Quantos escravos trabalham pra você?
01.04.2013
Anna Haddad
E se eu
dissesse que um menino doce e inteligente de 12 anos, recém chegado da Bolívia,
mora em uma casa de apenas 90m² no centro de São Paulo com mais 27 pessoas,
entre parentes e desconhecidos? Que essa casa velha e úmida mal comporta todas
as beliches cobertas com roupas de cama maltrapilhas, porque tem que ceder
espaço para colunas babilônicas de tecidos e máquinas de costura?
E se eu
dissesse que esses 28 trabalham cerca de 13 horas quase ininterruptas por dia,
no mesmo lugar em que moram e comem e vão ao banheiro e dormem e acordam e
começam tudo outra vez, por R$350,00 mensais?
E se eu
dissesse ainda que todos os 28, por não terem como pagar pela casa velha e pela
comida úmida, contraem dívidas absurdas e infindáveis com o indivíduo que os
contratou, e, por isso, tem seus passaportes e pertences apreendidos até que o
pagamento venha?
E se eu
dissesse que quem financia isso tudo é você?
Link
Youtube | De onde vem esse seu macacão estiloso, brother?
Em pleno
século 21, enquanto alguns falam de Google Glass e discutem as questões éticas
da clonagem terapêutica, os 28 costuram sem parar em instalações insalubres por
4 reais a peça.
Essa
mesma jaqueta que você comprou por 150 reais ontem na liquidação de verão e
correu para chegar em casa, vestir e mostrar para o namorado. Essa jaqueta que
você estava procurando, deu a sorte de encontrar e que te caiu como uma luva.
Em pleno
século 21, aqui, no Brasil, o trabalho escravo não está só na manufatura
têxtil. Esse é só o exemplo mais próximo de mim. O trabalho escravo está em
todo o país, muito provavelmente na sua cidade, no seu bairro. Nos diversos
fornecedores da indústria têxtil, na pecuária, na agricultura, na indústria
madeireira, na construção civil, nas carvoarias.
Mas,
calma. Você não tem nada a ver com isso.
Porque
você não sabe, certo? Você não sabia de nada disso. Ou ainda que soubesse,
entende que não há o que possa fazer. Claro. Porque você não é o dono da GAP,
Cori, da Luigi Bertolli, Emme, Collins, Gregory (…) E não é você quem contrata
essas pessoas e as submete a essas condições de trabalho horríveis. E se não
for lá, onde é que você vai comprar as suas roupas, não é mesmo?
E de que
adianta você parar de comprar essas pechinchas incríveis que encontra nas ruas
do centro, nas Lojas Marisa, Pernambucanas, C&A, se todo mundo continua
comprando? Que diferença vai fazer, não é? Além do mais, aquela bota tinha um ótimo
preço, e não te interessa, na verdade, de onde é que ela veio e o que é que foi
preciso ser feito para que ela estivesse aí, bonita e confortável no seu pé,
certo?
Alguém
foi mal pago para a sua camiseta custar quinze reais na 25 de Março.
O bom é
que agora você sabe. Vai dormir e acordar sabendo. Vai ter de admitir que sabe,
e encarar cada escolha. Sabendo. Que quatro ônibus com 235 trabalhadores em
situação análoga a de escravos foram apreendidos pela Polícia Rodoviária
Federal do Piauí. Que imigrantes de 12 anos de idade trabalham 16 horas por dia
para fazer a sua camiseta descolada de gola V da Zara. Que é você quem financia
cada uma das 28 máquinas de costura.
Não
precisa ser um fashionista pródigo. Muito pelo contrário. Você, que não se
importa muito com o que veste, e só quando precisa recorre a alguma loja de
departamento para comprar uma polo descolada a um bom preço. Você, sempre
antenado nas últimas tendências ditadas pelo mundo da moda. E você, que vira e
mexe vai até o centro de São Paulo atrás daquelas pechinchas no atacado. Que
pega carona com a mãe até a Pernambucanas que é para ver se sai de lá com uma
bermuda ou 2 camisetas básicas.
Não é
fácil lavar as mãos.
Se você
não sabe de onde é quem vem, muito provavelmente, financia o trabalho escravo.
São dois
os fatores escancarados e objetivos que mantém o trabalho escravo no país. O
motor econômico (que alimenta empregadores inescrupulosos e faz com que você vá
até o centro da cidade, compre aquela camiseta bacana por vintão e saia se
achando esperto), e a impunidade de crimes contra os direitos humanos.
Mas há
um terceiro, que penso ser o mais importante guarda-chuva dos maiores problemas
da humanidade. A desconexão.
Pessoas
submetem pessoas à condições de escravidão porque, como você e eu, acham que
não tem nada a ver com isso.
Link
Vídeo | Daniel Goleman fala da sua desconexão
Sobre
esse processo de “desligamento empático”, não tem como não transcrever um
trecho da fala do Daniel Goleman no TED Lateral Thinking, em 2007:
“Os objetos que compramos
e usamos têm consequências ocultas. Somos todos vítimas passivas do nosso ponto
cego coletivo. Nós não notamos. E não notamos que não notamos. Somos
indiferentes às consequências ecológicas, de saúde pública, sociais e econômicas
das coisas que compramos e usamos. De certa forma, a própria sala é o elefante
branco na sala, e nós não vemos. E nos tornamos vítimas de um sistema que nos
aponta para o outro lado.”
O
assunto daria milhares de outros textos.
Hoje, eu
só vim aqui para te fazer notar que você não nota.
Que
existe trabalho escravo. Aos montes. Agora. Não há 150 anos atrás, em período
escravocrata.Aqui, no Brasil, não em Zimbábue. Em Goiás, Minas, Santa Catarina.
No Brás, em São Paulo – não só naquela fazenda escondida no sul do Pará.
Hoje, eu
vim aqui para dizer que você tem tudo a ver com isso.
E aí?
Quantos escravos trabalham para você?
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