(em construção...)
CANTO DE ANINHA
“Éramos quatro as filhas de minha mãe.
Entre elas ocupei sempre o pior lugar.”
“...”Canto de Aninha”. Expressão polivalente, é extraída de Vintém
de cobre(...) ... a voz lírica perde-se (ou ganha-se?) na contemplação de si mesma, uma vez que agora
se trata de um olhar para dentro, rebuscando o seu sofrido e traumático
universo interior, para o qual já aponta o primeiro poema “Minha Infância”. Após o título, subscreve,
entre parênteses , uma propositada alusão ao pai da psicanálise: freudiana. O que se vê nesta seção é a menina mal-amada, discriminada, incompreendida,
traumatizada. Atentem para ela sobretudo aqueles que sondam as profundezas da
alma humana.” (Darcy França Denófrio)*
MINHA INFÂNCIA
(Freudiana)
Éramos quatro as filhas de minha
mãe.
Entre elas ocupei sempre o pior
lugar.
Duas me precederam – eram lindas,
mimadas.
Devia ser a última, no entanto,
Veio outra que ficou sendo a
caçula.
Quando nasci, meu velho Pai
agonizava,
Logo após morria.
Cresci filha sem pai,
Secundária na turma das irmãs.
Eu era triste, nervosa e feia.
Amarela, de rosto empalamado.
De pernas moles, caindo à toa.
Os que assim me viam – diziam:
“- Essa menina é o retrato vivo
do velho pai doente”.
Tinha medo das estórias
que ouvia, então, contar:
assombração, lobisomem, mula sem
cabeça.
Almas penadas do outro mundo e do
capeta.
Tinha as pernas moles
e os joelhos sempre machucados,
feridos, esfolados.
De tanto que caía.
Caía à toa.
Caía nos degraus.
Caía no lajedo do terreiro.
Chorava, importunava.
De dentro a casa comandava:
“-Levanta, moleirona”.
Minhas pernas moles desajudavam.
Gritava, gemia.
De dentro a casa respondia:
“- Levanta, pandorga”.
Caía à toa...
Nos degraus da escada,
No lajedo do terreiro.
Chorava. Chamava. Reclamava.
De dentro a casa se impacientava:
“- Levanta, perna-mole...”
E a moleirona, pandorga,
perna-mole
se levantava com seu próprio
esforço.
Meus brinquedos...
Coquilhos de palmeira.
Bonecas de pano.
Caquinhos de louça.
Cavalinhos de forquilha.
Viagens infindáveis...
Meu mundo imaginário
Mesclado à realidade.
E a casa me cortava: “menina
inzoneira!”
Companhia indesejável – sempre
pronta
a sair com minhas irmãs,
era de ver as arrelias
e as tramas que faziam
para saírem juntas
e me deixarem sozinha,
sempre em casa.
A rua... a rua!...
(Atração lúdica, anseio vivo da
criança,
mundo sugestivo de maravilhosas
descobertas)
- proibida às meninas do meu
tempo.
Rígidos preconceitos familiares,
normas abusivas de educação
- emparedavam.
A rua. A ponte. Gente que passava,
o rio mesmo, correndo debaixo da
janela,
eu via por um vidro quebrado, da
vidraça
empanada.
Na quietude sepulcral da casa,
era proibida, incomodava, a fala
alta,
a risada franca, o grito
espontâneo,
a turbulência ativa das crianças.
Contenção... motivação...
Comportamento estreito,
Limitando, estreitando
exuberâncias,
Pisando sensibilidades.
A gestar dentro de mim...
Um mundo heroico, sublimado,
superposto, insuspeitado,
misturado à realidade.
E a casa alheada, sem pressentir a
gestação,
acrimoniosa repisava:
“- Menina inzoneira!”
O sinapismo do ablativo
queimava.
Intimidada, diminuída.
Incompreendida.
Atitudes impostas, falsas,
contrafeitas.
Repreensões ferinas, humilhantes.
E o medo de falar...
E a certeza de estar sempre
errando...
Aprender a ficar calada.
Menina abobada, ouvindo sem
responder.
Daí, no fim da minha vida,
esta cinza que me cobre...
Este desejo obscuro, amargo,
anárquico
de me esconder,
mudar o ser, não ser,
sumir, desaparecer,
e reaparecer
numa anônima criatura
sem compromisso de classe, de
família.
Eu era triste, nervosa e feia.
Chorona.
Amarela de rosto empalamado,
de pernas moles, caindo à toa.
Um velho tio que assim me via
dizia:
“- Esta filha de minha sobrinha é
idiota.
Melhor fora não ter nascido!”
Melhor fora não ter nascido...
Feia, medrosa e triste.
Criada à moda antiga,
- ralhos e castigos.
Espezinhada, domada.
Que trabalho imenso dei à casa
para me torcer, retorcer,
medir e desmedir.
E me fazer tão outra,
diferente,
do que eu deveria ser.
Triste, nervosa e feia.
Amarela de rosto empapuçado.
De pernas moles, caindo à toa.
Retrato vivo de um velho doente.
Indesejável entre as irmãs.
Sem carinho de Mãe.
Sem proteção de Pai...
- melhor fora não ter nascido.
E nunca realizei nada na vida.
Sempre a inferioridade me tolheu.
E foi assim, sem luta, que me
acomodei
na mediocridade de meu destino.
O MOINHO DO TEMPO
Pé de meia sempre vazio.
Vazios os armários
Seus mistérios desmentidos.
Fechaduras arrebentadas,
arrancadas.
Velhas gavetas de antigas
mesas de austeras salas
vazias.
Os lavrados que guardavam,
Vendidos, empenhados,
sem retorno.
As velhas gavetas
guardam sempre um refugo de
coisas
que se agarram às casas
velhas e acabam mesmo
nos monturos.
As velhas gavetas
têm um cheiro nojento de barata.
As arcas desmanteladas.
Os baús amassados.
Os abastos resumidos.
A fornalha apagada.
Economizado o pau de lenha.
Pelos cantos as aranhas
diligentes, pacientes,
emaranham teias.
E a casa grande se apagando,
caindo lance a lance, seus
muros de taipa.
E um gato miau, fedendo pelos
cantos.
E a gente se apegava aos
santos,
tão distantes...
Rezava, Rezava, pedia,
prometia...
O tempo foi passando,
os santos, cansados,
enfastiados
economizando os milagres do
passado.
No fim os compradores de
antiguidades
acabaram mesmo levando os oratórios
e os santos, que fossem de
madeira,
dando lugar à TV, ao Rádio
RCA Victor de sete faixas.
A gente era moça do passado.
Namorava de longe, vigiada.
Aconselhada. Doutrinada dos
mais velhos,
em autoridade, experiência,
alto saber.
“Moça para casar não precisa
namorar,
o que for seu virá”.
Ai, meu Deus! E como custava
chegar...
Virá, Virá... Virá, Virá....
quando?
E o tempo passando e o moinho
dos anos moendo,
e a roda-da-vida rodando... Virá-virá!
A gente ali, na estaca,
amarrada, consumida
de Maria Borralheira, sem madrinha-fada,
sem sapatinho perdido,
sem arauto de príncipe-rei, a
procurar
pelos reinos da cidade de
Goiás
o pezinho faceiro do
sapatinho de cristal,
caído na correria da volta.
A igreja, refúgio e
confessionário antigo.
O frade, velho e cansado.
Frei Germano, piedoso,
Exortando paciente e severo.
“Minha filha, a virgindade
é um estado agradável aos
olhos de Deus. Olha as
santas virgens,
Santa Terezinha de Jesus,
Santa Clara, Santa Cecília,
Santa Maria Mãe de Jesus.
Deus dá uma proteção
especial às virgens.
Reza três ave-marias e uma
salve rainha a Nossa
Senhora e vai comungar”.
A gente saía confortada,
ouvia a missa,
cumpria a penitência e
comungava humildemente,
ajoelhada,
véu na cabeça em modéstia
reforçada.
Depois, depois, a solidão de
solteira, o sonho honesto
De um noivo,
o desejo de filhos,
presença de homem, casa da
gente mesma, dona ser.
Um lar.
Estado de casada.
A pobreza em toda volta, a
luta obscura
de todas as mulheres goianas.
No pilão, no tacho,
fundindo velas de sebo, no
ferro de brasa de engomar.
Aceso sempre o forno de
barro.
As quitandas de salvação,
carreando pelos taboleiros
os abençoados vinténs, tão
valedores, indispensáveis.
Eram as costuras trabalhadas,
os desfiados, os crivos
pacientes.
A reforma do velho, o
aproveitamento dos retalhos.
Os bordados caprichados, os
remendos instituídos,
os cerzidos pacientes...
Tudo economizado,
aproveitado.
Tudo ajudava a pobreza
daquela classe média, coagida,
forçada a manter as
aparências de decência, compostura,
preconceito, sustentáculos da
pobreza disfarçada.
Classe média do após treze de
maio.
Geração ponte, eu fui, posso
contar.
O poço d`água, a maravilhosa
servidão da casa.
Toda a família na dependência
do poço, da corda, do
Balde.
A água lá no fundo, cisterna,
também chamada.
Um dia, dia incerto e já
previsto o desastre, o transtorno.
Todos atingidos,
impressionados, participantes,
da porta da rua ao fundo do
quintal. Arrebentou a
corda do poço...
gasta e cansada, exausta da
sua resistência.
Corda vigente, corda de
arrocho, corda de enforcar,
lá se foi com seu pedaço,
agarrada ao balde, descansar
no fundo profundo do poço.
A casa toda assanhada,
informa: arrebentou a corda do poço.
Vamos tentar a retirada de
salvação geral.
Todos participantes,
impressionados, coniventes na salvação
do balde, o resto da corda.
A vizinha de lado comparece
por cima do muro, oferece
seu balde, dá palpites,
solidária.
Uma longa vara, um gancho na ponta
a vasculhar
o fundo escuro, em passeio
lento e paciente. Assistência,
a torcida geral. Afinal,
ponta e gancho enlaçam o que desceu
e sobe triunfante. Faz-se a
emenda com perícia,
gente antiga, afeita a essa e
outras emergências.
Cada qual aos seus interesses
e, volta a casa
à rotina da vida do passado.
Tanta pobreza a contornar.
Tanto sonho irrealizado,
tanto abandono.
Tanta água de sonho puxado do
poço da imaginação...
Valiam as velhas, seus
adágios de sustentação:
conter e reprimir as jovens,
dar-lhes esperanças,
ensinar-lhes a paciência, a
vontade de Deus.
E a gente a querer abrir uma
brecha naquela muralha
parda de pobreza e limitação.
Hoje sobrará para todos mil
cruzeiros.
Me faltando sempre o vintém
da infância. Bem por isso
mandei fazer um broche de um
vintém de cobre
e preguei no meu vestido do
lado do coração.
Sentir a presença daquele
vintém
pobre da minha infância, tão
procurado, tão escasso!...
Sentir a metade daquela
bolacha que repartia comigo
o carinho da minha bisavó, na
sua pobreza mansa.
Estender de novo minhas
pequenas mãos de criança
para as quitandas, broinhas,
brevidades
e biscoitos que me dava tia
Nhorita,
ela, se findando numa velhice
tão bonita
como outra igual não vi.
Seu sorriso de Mona Lisa,
seu mistério de Gioconda.
Ter nos meus braços aquela
boneca de loiça vinda de Paris,
de chapeuzinho, enfeite, sua
flor minúscula, azul, lá da França.
Sapatinhos e meias, loira,
olhos azuis e que dormia...
e que nunca foi minha.
Eu vivia aquela boneca,
sonhava e ela sempre ali, inacessível,
na estática da vitrine
envidraçada da loja de “Seu” Cincinato.
Voltar à infância... Voltar
ao paraíso perdido
de uma infância pobre que
pedia tão pouco!
Menino Jesus, sorridente no
oratório.
Uma bolinha azul nas mãos
poderosas sustentando o mundo.
Ele, tão pequenino e frágil.
Tantos santinhos pobres me
protegendo,
tantas velhas me ensinando as
regras da vida...
Eu era cega, ceguinha,
peticega, sem nada ver.
Mouca, surda,
surdinha, sem nada ouvir...
Chegar hoje a evocação dolorida
e rude...
Meu vintém de cobre!
Arrebentar todas as amarras
e contenções representadas.
Meu vintém, está comigo
nestas páginas de escrever.
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Coralina, Cora, 1889 – 1985. Melhores poemas / Cora Coralina: Seleção e
Apresentação Darcy França Denófrio. 3ª. Ed. rev. e
ampliada – São Paulo:Global, 2008. -
(Coleção Melhores Poemas / direção Edla van Steen)
ISBN 85-260-0883-8
1.Poesia Brasileira. I.Denófrio, Darcy França.
II.Van Steen, Edla.
2.Poesia: Literatura Brasileira
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