A Construção da Alegria
Hélio Pellegrino (1924-1998)
in A BURRICE DO DEMÔNIO, janeiro de 1987
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"Constrói-se a própria alegria como quem constrói um barco: com ferramentas difíceis (...) Um barco se constrói devagar, com fiel austeridade. Os gestos precisos – navegar é preciso! – se sucedem, trabalhando a matéria dia após dia. O dia é o tempo da construção do barco, sua forma emerge aos poucos, como uma asa que irrompe.
Assim é a alegria – como uma asa que irrompe. Não cai do céu, nem salta do mar, nem nos bate à porta de repente, como a visita de um anjo. Ela é o barco que projetamos e construímos, no espaço do nosso tempo – vida nossa. Há que construir. Trabalhar. Operar o pão de cada dia, com diligente paciência. A alegria nos visita à tarde, ou pela noite, quando somos densos de um maduro cansaço. Ao amanhecer, surge o sonho do barco e a tarefa de fazê-lo (...) O barco no sonho: puro marulho de liberdade, espírito pairando sobre as águas, mas já cúmplice da luta e da lágrima, embora leve, de uma leveza quase impensável.
A alegria autêntica – e severa– vai consistir em nos dispormos, embarcados, ao serviço do ser. Este ofício é paixão e disciplina, perseverança e esperança, modéstia – e embriagada lucidez. Cumpre arear, limpar, varrer, despojar-se, estar aberto, na viagem que fazemos. Cumpre doar a tudo o que existe o espaço indeterminado e generoso de nossa liberdade, para que nele tudo esplenda. Cumpre soletrar, com carinho, o nome das coisas e do Próximo, como um pastor que, no campo, pastoreia e aboia as reses do rebanho sob sua guarda."
AUTOBIOGRAFIA
* trechos do livro LUCIDEZ EMBRIAGADA (2004),
organização ANTONIA PELLEGRINO, Editora Planeta
(...) "Lembro-me de uma aula de fisiologia nervosa, no segundo ano. O doente, com tabes dorsal, ao centro do anfiteatro escolar, era um velhinho miúdo, ex-marinheiro, vestido com o uniforme da Santa Casa, onde estava internado. Suas pernas, hipotônicas, atrofiadas, pendiam da mesa de exame como molambos inertes. Jamais me sairá da memória o antigo lobo-do-mar, exilado das vastidões marítimas, feito coisa, diante de nós. Suas andanças pelo mundo, seus amores em cada porto ficavam reduzidos, em termos de anamnese, a um contágio venério ocorrido décadas atrás. O velhinho, contrafeito, engrolava o seu depoimento, fustigado pelos gritos de - "fala mais alto!" - com que buscávamos saciar nosso zelo científico. De repente, o desastre. Sem controle esfincteriano, o velho urinou-se na roupa, em pleno centro do mundo. Vejo-o, pequenino, curvado para a frente, tentando esconder com as mãos a umidade ultrajante. Seu pudor, entretanto, nada tinha a ver com a ciência neurológica. Esta lavrara um tento de gala, e o sintoma foi saudado com ruidosa alegria, como um goal decisivo na partida que ali se travava contra a sífilis nervosa.
O velho ficou esquecido como um atropelado na noite. A aula prosseguiu, brilhantemente ilustrada. Os reflexos e a sensibilidade cutânea do paciente foram pesquisados com maestria. Agulhas e martelos tocavam sua carne - esta carne revestida de infinita dignidade, que um dia ressurgirá na Hora do Juízo. Meu colega Elói Lima percebeu juntamente comigo o acontecimento espantoso. "O marinheiro está chorando" - me disse. Fomos três a chorar.
Entre lágrimas e urina, nasceu-me o desejo de me dedicar à psiquiatria. O choro do velho, seu desamparo, sua figura engrouvinhada sobre a qual parecia ter-se abatido todo o inverno do mundo, tudo me surgiu de repente como o grande tema de meditação, a partir de cuja importância poderia eu, quem sabe, encontrar um caminho" (...) (p.24/25).
PSICANÁLISE E LIBERDADE
(...) "Assim exercíamos nossa juventude, assim eu procurava os meus caminhos. É curioso como, por linhas aparentemente tortas, preparava, sem o saber, o chão em que iria fundar minha futura atividade de psicanalista. A psicanálise é, essencialmente, a ciência da liberdade humana" (...) (p.26)
(...)"Meu amor à literatura, à poesia, à política, fazendo de mim um estudante dispersivo e frequentemente relapso, salvou-me de qualquer forma de tentação do redutivismo, do mecanicismo e do organicismo enragés. A pessoa humana é uma totalidade transcendente cujo centro é a liberdade. Para construirmos uma ciência da pessoa, temos que começar por respeitá-la na sua essência originária. O ser humano é liberdade encarnada, é corpo e matéria integrados num todo por eles sustentado, mas que os transcende."(...) (p.27)
..... entrevista C Lisp...
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"AMA E FAZ O QUE QUISERES. SE CALARES, CALARÁS COM AMOR; SE GRITARES, GRITARÁS COM AMOR; SE CORRIGIRES, CORRIGIRÁS COM AMOR; SE PERDOARES, PERDOARÁS COM AMOR. SE TIVERES O AMOR ENRAIZADO EM TI, NENHUMA COISA SENÃO O AMOR SERÃO OS TEUS FRUTOS." Santo Agostinho
sábado, 27 de novembro de 2010
A "LUCIDEZ EMBRIAGADA" de Hélio Pellegrino
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