TRAVESSEIRO SUSPENSO POR FIOS DE NYLON

sábado, 27 de novembro de 2010

A "LUCIDEZ EMBRIAGADA" de Hélio Pellegrino

A Construção da Alegria




Hélio Pellegrino (1924-1998)
in A BURRICE DO DEMÔNIO, janeiro de 1987

   "Constrói-se a própria alegria como quem constrói um barco: com ferramentas difíceis (...) Um barco se constrói devagar, com fiel austeridade. Os gestos precisos – navegar é preciso! – se sucedem, trabalhando a matéria dia após dia. O dia é o tempo da construção do barco, sua forma emerge aos poucos, como uma asa que irrompe.

    Assim é a alegria – como uma asa que irrompe. Não cai do céu, nem salta do mar, nem nos bate à porta de repente, como a visita de um anjo. Ela é o barco que projetamos e construímos, no espaço do nosso tempo – vida nossa. Há que construir. Trabalhar. Operar o pão de cada dia, com diligente paciência. A alegria nos visita à tarde, ou pela noite, quando somos densos de um maduro cansaço. Ao amanhecer, surge o sonho do barco e a tarefa de fazê-lo (...) O barco no sonho: puro marulho de liberdade, espírito pairando sobre as águas, mas já cúmplice da luta e da lágrima, embora leve, de uma leveza quase impensável.

    A alegria autêntica – e severa– vai consistir em nos dispormos, embarcados, ao serviço do ser. Este ofício é paixão e disciplina, perseverança e esperança, modéstia – e embriagada lucidez. Cumpre arear, limpar, varrer, despojar-se, estar aberto, na viagem que fazemos. Cumpre doar a tudo o que existe o espaço indeterminado e generoso de nossa liberdade, para que nele tudo esplenda. Cumpre soletrar, com carinho, o nome das coisas e do Próximo, como um pastor que, no campo, pastoreia e aboia as reses do rebanho sob sua guarda."


QUEM É HÉLIO PELLEGRINO...


PSICANALISTA, POETA E DEFENSOR DA LIBERDADE


Minas Gerais é a terra do pão de queijo, de moça bonita e de poeta talentoso. Nascido na cidade de Belo Horizonte em 05 de janeiro de 1924, Hélio Pellegrino se destacou no cenário literário nacional e tornou-se referência na vida política e cultural brasileira. Por meio de artigos publicados em jornais do Rio de Janeiro e São Paulo, Hélio discutiu com maestria a sua especialidade, a Psicanálise, e os caminhos da religião, política, arte, economia e literatura.


Filho de Braz Pellegrino, famoso médico da cidade, e Assunta Magaldi Pellegrino, nascida no sul da Itália, o poeta tornou-se amigo de Fernando Sabino logo quando criança, amizade que perdurou por toda a sua vida. Logo cedo, demonstrou seu interesse por literatura e, aos 14 anos, dedicou-se à leitura de Carlos Drummond, ocasião em que começou a escrever seus primeiros poemas.

Em 1940, Hélio fortificou laços de amizade com Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, formando, assim, o grupo que ficou conhecido como “os quatro mineiros”. Dois anos depois, o poema “Deixai-o”, considerado sua primeira obra significativa, foi publicado na revista católica A ordem. No mesmo ano, por pressão da família, ingressou na faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e, em 1943, decidiu se especializar na área da medicina psiquiátrica.

Desde os tempos de estudante, Hélio participou ativamente da vida política do país, porém, sem nunca abandonar o seu viés literário. Em 1944 editou o jornal clandestinoLiberdade na companhia de Otto Lara Resende, Darci Ribeiro, Francisco Iglesias, Simão Vianna de Cunha Pereira e Wilson Figueiredo. No ano seguinte, participou da fundação da União Democrática Nacional (UDN), que, apesar de ter sido voltada, num primeiro momento, contra a ditadura estadonovista, caracterizou-se essencialmente pela oposição constante a Getúlio Vargas e ao getulismo. Após ter concorrido ao cargo de deputado federal pelo partido, Hélio se desligou da UDN em 1946 e fundou a Esquerda Democrática, ligada diretamente ao Partido Comunista.

Em 1947, o poeta publicou um livreto com dois poemas (“Poema do príncipe exilado” e “Deixe que eu te ame”) através do grupo literário “Edifício”. No mesmo ano, iniciou a prática psiquiátrica no manicômio Raul Soares, em Belo Horizonte, abrindo seu consultório particular em 1950 no Hospital de Neuropsiquiatria infantil. Com o propósito de se formar psicanalista, Hélio começou uma análise didática com Iracy Doyle, interrompida em 1956 pelo seu falecimento. Dois anos depois, retomou a análise com Dona Catarina Kemper, para se formar em 1963.

Hélio Pellegrino foi homem de família grande. Em 1948, casou-se com Maria Urbana Pentagna Guimarães, mulher que permaneceu como sua companheira por quarenta anos e com quem teve sete filhos. Em 1974, o psicanalista casou-se com a física Sarah de Castro Barbosa, união que durou sete anos. Em 1985, Hélio conheceu Lya Luft, romancista e poetisa brasileira, com quem trocou cartas durante algum tempo e veio a se casar no ano seguinte.

Quando mudou-se para o Rio de Janeiro com sua família, em 1952, Pellegrino começou a trabalhar como redator no jornal O Globo e, em 1964, iniciou a colaboração para oCorreio da Manhã, atividade que manteve por quatro anos. Participou do O Pasquim entre 1978 e 1980. Fiel às suas convicções na luta pelos direitos de cidadania, Hélio Pellegrino batalhou duramente contra a Ditadura Militar e contra as posições da sociedade psicanalítica, que criticava sua postura em relação ao regime de exceção. Em 1968 discursou na “Passeata dos Cem Mil”, uma manifestação de protesto por decorrência da morte de um estudante. Devido a sua ousadia em uma época de censura e tensões, Hélio foi mantido preso durante dois meses em 1969, tendo sido processado sob a acusação de líder comunista. Em 1980, o psicanalista aderiu ao manifesto de fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) juntamente a Mário Pedrosa, Lula, Antonio Candido, Apolônio de Carvalho e Sérgio Buarque de Hollanda. Dois anos depois, iniciou a colaboração para o jornal Folha de São Paulo, que duraria três anos e meio.

Em 1988, o Brasil perdeu um grande psicanalista, poeta e defensor da liberdade do homem. Seu coração achou que já era hora de parar, levando-o ao falecimento. Como prova do seu brilhantismo em vida, foram realizados uma série de lançamentos póstumos, como a seleção de poemasMinérios domados (Ed. Rocco), organizada por Humberto Werneck, em 1993, e o livro Hélio Pellegrino, a paixão indignada (Ed. Relume Dumará) de Paulo Roberto Pires, em 1998. Em 2004, a editora Bem-Te-Vi publicou o “Arquivinho de Hélio Pellegrino". No mesmo ano, chegou às livrarias Lucidez Embriagada (Ed. Planeta), com organização de Antônia Pellegrino, neta do autor. Hélio deixou saudades, mas sua obra e seu exemplo de luta, sem dúvida, não serão esquecidos.
 Texto de Natália Boaventura - 

AUTOBIOGRAFIA
* trechos do livro LUCIDEZ EMBRIAGADA (2004),

 organização ANTONIA PELLEGRINO, Editora Planeta


(...) "Lembro-me de uma aula de fisiologia nervosa, no segundo ano. O doente, com tabes dorsal, ao centro do anfiteatro escolar, era um velhinho miúdo, ex-marinheiro, vestido com o uniforme da Santa Casa, onde estava internado. Suas pernas, hipotônicas, atrofiadas, pendiam da mesa de exame como molambos inertes. Jamais me sairá da memória o antigo lobo-do-mar, exilado das vastidões marítimas, feito coisa, diante de nós. Suas andanças pelo mundo, seus amores em cada porto ficavam reduzidos, em termos de anamnese, a um contágio venério ocorrido décadas atrás. O velhinho, contrafeito, engrolava o seu depoimento, fustigado pelos gritos de - "fala mais alto!" - com que buscávamos saciar nosso zelo científico. De repente, o desastre. Sem controle esfincteriano, o velho urinou-se na roupa, em pleno centro do mundo. Vejo-o, pequenino, curvado para a frente, tentando esconder com as mãos a umidade ultrajante. Seu pudor, entretanto, nada tinha a ver com a ciência neurológica. Esta lavrara um tento de gala, e o sintoma foi saudado com ruidosa alegria, como um goal decisivo na partida que ali se travava contra a sífilis nervosa.

O velho ficou esquecido como um atropelado na noite. A aula prosseguiu, brilhantemente ilustrada. Os reflexos e a sensibilidade cutânea do paciente foram pesquisados com maestria. Agulhas e martelos tocavam sua carne - esta carne revestida de infinita dignidade, que um dia ressurgirá na Hora do Juízo. Meu colega Elói Lima percebeu juntamente comigo o acontecimento espantoso. "O marinheiro está chorando" - me disse. Fomos três a chorar.

Entre lágrimas e urina, nasceu-me o desejo de me dedicar à psiquiatria. O choro do velho, seu desamparo, sua figura engrouvinhada sobre a qual parecia ter-se abatido todo o inverno do mundo, tudo me surgiu de repente como o grande tema de meditação, a partir de cuja importância poderia eu, quem sabe, encontrar um caminho" (...) (p.24/25).

PSICANÁLISE   E   LIBERDADE 

(...) "Assim exercíamos nossa juventude, assim eu procurava os meus caminhos. É curioso como, por linhas aparentemente tortas, preparava, sem o saber, o chão em que iria fundar minha futura atividade de psicanalista. A psicanálise é, essencialmente, a ciência da liberdade humana" (...) (p.26)

(...)"Meu amor à literatura, à poesia, à política, fazendo de mim um estudante dispersivo e frequentemente relapso, salvou-me de qualquer forma de tentação do redutivismo, do mecanicismo e do organicismo enragés. A pessoa humana é uma totalidade transcendente cujo centro é a liberdade. Para construirmos uma ciência da pessoa, temos que começar por respeitá-la na sua essência originária. O ser humano é liberdade encarnada, é corpo e matéria integrados num todo por eles sustentado, mas que os transcende."(...) (p.27)

..... entrevista C Lisp...
















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