25/03/2013 2:30 pm REVISTA FÓRUM
Na hora de fazer não gritou
Na hora de fazer não gritou
Essa frase, ouvida por muitas mulheres na hora do parto, é uma das tantas caras da violência obstétrica que vitima uma em cada quatro mulheres brasileiras.
Por Andrea Dip, da Pública
A pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, mostrou que uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. As mais comuns, segundo o estudo, são gritos, procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação, falta de analgesia e até negligência.
Eu tive meu filho em um esquema conhecido por profissionais da área da saúde como o limbo do parto: um hospital precário, porém maquiado para parecer mais atrativo para a classe média, que atende a muitos convênios baratos, por isso está sempre lotado, não é gratuito, mas o atendimento lembra o pior do SUS, porém sem os profissionais capacitados dos melhores hospitais públicos nem a infraestrutura dos hospitais caros particulares para emergências reais. Durante o pré-natal, fui atendida por plantonistas sem nome. Também não me lembro do rosto de nenhum deles. O meu nome variava conforme o número escrito no papel de senha da fila de espera: um dia eu era 234, outro 525. Até que, durante um desses “atendimentos” a médica resolveu fazer um descolamento de membrana, através de um exame doloroso de toque, para acelerar meu parto, porque minha barriga “já estava muito grande”. Saí do consultório com muita dor e na mesma noite, em casa, minha bolsa rompeu. Fui para o tal hospital do convênio já em trabalho de parto.
Quando cheguei, me instalaram em uma cadeira de plástico da recepção e informaram meus acompanhantes que eu deveria procurar outro hospital porque aquele estava lotado. Lembro que fazia muito frio e eu estava molhada e gelada, pois minha bolsa continuava a vazar. Fiquei muito doente por causa disso. Minha mãe ameaçou ligar para o advogado, disse que processaria o hospital e que eu não sairia de lá em estágio tão avançado do trabalho de parto. Meu pai quis bater no homem da recepção. Enquanto isso, minhas contrações aumentavam. Antes de ser finalmente internada, passei por um exame de toque coletivo, feito por um médico e seus estudantes, para verificar minha dilatação. “Já dá para ver o cabelo do bebê, quer ver pai?” mostrava o médico para seus alunos e para o pai do meu filho. Consigo me lembrar de poucas situações em que fiquei tão constrangida na vida. Cerca de uma hora depois, me colocaram em uma sala com várias mulheres. Quando uma gritava, a enfermeira dizia: “pare de gritar, você está incomodando as outras mães, não faça escândalo”. Se eu posso considerar que tive alguma sorte neste momento, foi o de terem me esquecido no fim da sala, pois não me colocaram o soro com ocitocina sintética que acelera o parto e aumenta as contrações, intensificando muito a dor. Hoje eu sei que se tivessem feito, provavelmente eu teria implorado por uma cesariana, como a grande maioria das mulheres.
Não tive direito a acompanhante. O pai do meu filho entrava na sala de vez em quando, mas não podia ficar muito para preservar a privacidade das outras mulheres. A moça que gritava pariu no corredor. Até que uma enfermeira lembrou de mim e me mandou fazer força. Quando eu estava quase dando a luz, ela gritou: “pára!” e me levou para o centro cirúrgico. Lá me deram uma combinação de anestesia peridural com raquidiana, sem me perguntar se eu precisava ou gostaria de ser anestesiada, me deitaram, fizeram uma episotomia (corte na vagina) sem meu consentimento – procedimento desnecessário na grande maioria dos casos, segundo pesquisas da medicina moderna – empurraram a minha barriga e puxaram meu bebê em um parto “normal”. Achei que teria meu filho nos braços, queria ver a carinha dele, mas me mostraram de longe e antes que eu pudesse esticar a mão para tocá-lo, levaram-no para longe de mim. Já no quarto, tentei por três vezes levantar para ir até o berçario e três vezes desmaiei por causa da anestesia. “Descanse um pouco mãezinha” diziam as enfermeiras “Sossega!” Eu não queria descansar, só estaria sossegada com meu filho junto de mim! O fotógrafo do hospital (que eu nem sabia que estava no meu parto) veio nos vender a primeira imagem do bebê, já limpo, vestido e penteado. Foi assim que eu vi pela primeira vez o rostinho dele, que só chegou para mamar cerca de 4 horas depois.
Faz exatamente nove anos que tudo isso aconteceu e hoje é ainda mais doloroso relembrar porque descobri que o que vivi não foi uma fatalidade, ou um pesadelo: eu, como uma a cada quatro mulheres brasileiras, fui vítima de violência obstétrica.
Uma em cada quatro mulheres sofre violência no parto
O conceito internacional de violência obstétrica define qualquer ato ou intervenção direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera (que deu à luz recentemente), ou ao seu bebê, praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências. A pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, mostrou que uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. As mais comuns, segundo o estudo, são gritos, procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação, falta de analgesia e até negligência.
Mas há outros tipos, diretos ou sutis, como explica a obstetriz e ativista pelo parto humanizado Ana Cristina Duarte: “impedir que a mulher seja acompanhada por alguém de sua preferência, tratar uma mulher em trabalho de parto de forma agressiva, não empática, grosseira, zombeteira, ou de qualquer forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido, tratar a mulher de forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e diminutivos, submeter a mulher a procedimentos dolorosos desnecessários ou humilhantes, como lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos, posição ginecológica com portas abertas, submeter a mulher a mais de um exame de toque, especialmente por mais de um profissional, dar hormônios para tornar o parto mais rápido, fazer episiotomia sem consentimento”.
“A lista é imensa e muitas nem sabem que podem chamar isso de violência. Se você perguntar se as mulheres já passaram por ao menos uma destas situações, provavelmente chegará a 100% dos partos no Brasil” diz Ana Cristina, que faz parte de um grupo cada vez maior de mulheres que, principalmente através de blogs e redes sociais, têm lutado para denunciar a violência obstétrica tão rotineira e banalizada nos aparelhos de saúde.
“Algumas mulheres até entendem como violência, mas a palavra é mais associada a violência urbana, fisica, sexual” diz a psicóloga Janaína Marques de Aguiar, autora da tese “Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero” que entrevistou puérperas (com até três meses de parto) e profissionais de maternidades públicas de São Paulo. “Quando a gente fala em violência na saúde, isso fica dificil de ser visualizado. Porque há um senso comum de que as mulheres podem ser maltratadas, principalmente em maternidades públicas” acredita. E dá alguns exemplos: “Duas profissionais relataram, uma médica e uma enfermeira, que um colega na hora de fazer um exame de toque em uma paciente, fazia brincadeiras como ‘duvido que você reclame do seu marido’ e ‘Não está gostoso?”
Em março de 2012, um grupo de blogueiras colocou no ar um teste de violência obstétrica, que foi respondido de forma voluntária por duas mil mulheres e confirmou os resultados da pesquisa da Fundação Perseu Abramo. “Apesar de não terem valor científico, os resultados mostraram que 51% das mulheres estava insatisfeita com seu parto e apenas 45% delas disse ter sido esclarecida sobre os todos os procedimentos obstétricos praticados em seus corpos” lembra a jornalista mestre em ciências Ana Carolina Franzon, uma das coordenadoras da pesquisa. “Nós quisemos mostrar para outras mulheres que aquilo que elas tinham como desconforto do parto era, na verdade, a violação de seus direitos. Hoje nós somos protagonistas das nossas vidas e quando chega no momento do parto, perdemos a condição de sujeito” opina Ana Carolina.
Desse teste nasceu o documentário “Violência Obstétrica – A voz das brasileiras” (que você pode assistir no fim da matéria) com depoimentos gravados pelas próprias mulheres sobre os mais variados tipos de humilhação e procedimentos invasivos vividos por elas no momento do parto. Uma das participantes diz que os profissionais fizeram comentários “sobre o cheiro de churrasco da barriga durante a cesárea”.
Mas talvez o relato mais triste seja o da mineira Ana Paula, que após planejar um parto natural, foi ao hospital com uma complicação e, sem qualquer explicação por parte dos profissionais, foi anestesiada, amarrada na cama, mesmo sob protestos, submetida a episiotomia, separada da filha, largada por várias horas em uma sala sem o marido e sem informações. Seu bebê não resistiu e faleceu por causas obscuras. Ana Paula denunciou o falecimento de sua filha ao Ministério da Saúde pedindo uma investigação e em paralelo denunciou a equipe, convênio médico e o hospital que a atenderam ao CRM de Belo Horizonte. Diante do silêncio do Conselho, que abriu uma sindicância em novembro de 2012 e não forneceu mais informações, a advogada de Ana Paula, Gabriella Sallit, entrou com uma ação na justiça.
“O processo da Ana Paula foi o primeiro que trata a violência obstetrica nestes termos. Não é um processo contra erro médico, ou pelo fim de uma conduta médica. É sobre o procedimento, a violência no tratar. É um marco porque é o primeiro no Brasil” explica a advogada. “É uma ação de indenização por dano moral que lida com atos notoriamente reconhecidos como violência obstétrica. Tudo isso tem respaldo na nossa legislação”, diz.
Para prevenir a violência no parto, infelizmente comum, a advogada aconselha que as mulheres escrevam uma carta de intenções com os procedimentos que aceitam e não aceitam durante a internação. “Faça a equipe assinar assim que chegar ao hospital. E antes de sair do hospital, requisite seu prontuário e o do bebê. É um direito que muitas mulheres desconhecem. Isso é mais importante do que a mala da maternidade, fraldas e roupas. Estamos falando de algo que pode te marcar para o resto da vida”.
Direitos legais desrespeitados nas maternidades
Além do nosso código penal e dos vários tratados internacionais que regulam de forma geral os direitos humanos e direitos das mulheres em especial, a portaria 569 de 2000 do Ministério da Saúde, que institui o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento do SUS, diz: “toda gestante tem direito a acesso a atendimento digno e de qualidade no decorrer da gestação, parto e puerpério” e “toda gestante tem direito à assistência ao parto e ao puerpério e que esta seja realizada de forma humanizada e segura” e a LEI Nº 11.108, DE 7 DE ABRIL DE 2005 garante às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato nos hospitais do SUS. Mas dificilmente essas normas são seguidas, como explica a pesquisadora Simone Diniz (leia entrevista na íntegra), formada em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo, que participou da pesquisa “Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento”, grande e minucioso panorama realizado pela Fiocruz em parceria com o Ministério da Saúde – ainda sem data para lançamento.
“O parto é muito medicalizado e muito marcado pela hierarquia social da mulher no Brasil. Para algumas questões de saúde, como para quem tem HIV, precisa de um antiretroviral ou de uma cirurgia, você tem o mesmo procedimento público e privado, existe um padrão do que é considerado como aceitável. Para o parto não. A assistência ao parto para as mulheres de menor renda e escolaridade e para aquelas que o IBGE chama de pardas e negras, é muito diferente das mulheres escolarizadas, que estão no setor privado, pagantes. Normalmente as mulheres de renda mais baixa têm uma assistência que não dá nenhum direito a escolha sobre procedimentos. Os serviços atendem essas mulheres para um parto vaginal com várias intervenções que não correspondem ao padrão ouro da assistência, como ficar sem acompanhante e serem submetidas a procedimentos invasivos que não deveriam ser usados a não ser com extrema cautela, como o descolamento das membranas, que é muito agressivo, doloroso, aumenta o risco de lesão de colo e infecções, a ruptura da bolsa, como aceleração do parto. É uma ideia de produtividade que parte do pressuposto que o parto é um evento desagrádavel, degradante, humilhante, repulsivo, sujo e que portanto aquilo deve ser encurtado. No setor público é pior, mas é preciso levar em conta que no setor privado, 70% das mulheres nem entra em trabalho de parto, vão direto para cesarianas eletivas”.
Cesariana desnecessária: mais uma violência contra a mulher
A imposição de uma cesariana desnecessária também tem sido vista pelos pesquisadores e pelas próprias mulheres como uma forma de violência porque além de um procedimento invasivo, oferece mais riscos a curto e longo prazo para a mãe e o bebê. “Hoje nós sabemos que existe muito mais segurança nos partos fisiológicos do que nas cesáreas. Não tenha dúvidas de que elas são um recurso importante que salva vidas quando realmente necessárias. Mas no parto fisiológico o bebê tem menor chance de ir para uma UTI neonatal, de ter problemas respiratórios, metabólicos, infecções, tem o melhor prognóstico de todos” explica Simone Diniz. “O bebê nasce estéril e a medida que ele entra em contato com as bactérias da vagina durante o parto, é colonizado por elas e isso fará com que ele desenvolva um sistema imune muito mais saudável do que se nascer de cesárea e for contaminado por bactérias hospitalares. Esse é conhecimento recente, mas já sairam pesquisas sobre risco diferenciado de asma, diabete, obesidade e uma série de doencas crônicas”.
Apesar do índice máximo de cesarianas aconselhado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) ser o de 15%, o Brasil lidera o ranking na América Latina, segundo a Unicef, com mais de 50% de nascimentos através da cirurgia. O índice sobe consideravelmente quando se olha apenas para os hospitais particulares. Em 2010, 81,83% das crianças que nasceram via convênios médicos, vieram ao mundo por cesarianas. Em 2011, o número aumentou para 83,8%, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Há ainda hospitais particulares como o Santa Joana, em São Paulo, que no primeiro trimestre de 2009 apresentou taxa de 93,18% cesarianas, segundo o Sistema de Informações de Nascidos Vivos (SINASC). Questionada a respeito, a ANS declarou por meio de assessoria de imprensa que “vem trabalhando, desde 2005, para a diminuição do número de partos cesáreos, mas o problema é bastante complexo e multifatorial, envolvendo a organização do trabalho do médico, dos hospitais e a própria cultura e informação da população brasileira”. Disse ainda que “não existe limite para a realização de partos cesáreos” e que isso depende da indicação médica.
No filme “O Renascimento do Parto”, ainda sem data de estreia no Brasil, mas que já possui uma versão resumida no Youtube, o pediatra Ricardo Chaves questiona: “Eu quero saber o seguinte: nós combinamos com o bebê que ele vai nascer sexta-feira, quatro da tarde? Ele respondeu que tem condição de nascer?”
Nos consultórios, a prática é assustar a mulher
Os profissionais têm opiniões diferentes a respeito do grande volume de cesarianas. Para a médica obstetra representante do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) Silvana Morandini, “a medicina defensiva está indicando mais a cesárea. Se o bebê tem circular de cordão no pescoço, se é um feto muito grande, se tem placenta marginal, qualquer diagnóstico que possa dar problema, aumenta a prescrição”. Ela chama isso de “conduta defensiva”, por “medo de dar errado”. Silvana também acredita que “o grande número de cesáreas é cultural. A mulher brasileira tem a ideia de que com o parto vaginal vai ficar com o perineo mais flácido”.
Já o obstetra especialista em parto humanizado Jorge Kuhn acredita que “a grande culpada pelo boom de cesarianas foi a mudança do modelo obstétrico. Antigamente o modelo era centrado na obstetriz. O médico era chamado nos casos de complicação. A transformação do parto domiciliar em hospitalar, na década de 1970, aumentou a incidência de cesarianas. É lógico que esse índice também cresceu por outras razões, como gravidez múltipla, idade avançada e riscos reais ”. Ele explica que outro fator importante foi a entrada dos convênios médicos nos planos de parto. “Eles perceberam que para vender planos de saúde, um bom argumento era o de que a mulher faria o pré-natal com o mesmo médico que faria o parto e isso é a maior cilada. Porque o médico prefere ficar no consultório a sair para ganhar tão pouco. Dizem que a mulher escolhe a cesariana, mas o parto normal é desconstruído no consultório consulta a consulta. Frases como ‘nossa, mas esse bebê está crescendo muito’ dão a conotação subliminar de que a mulher não poderá ter parto normal. Circular de cordão, bacia estreita, feto grande, feto pequeno, pouco líquido, muito líquido, pressão arterial alta, diabetes, nada disso é indicação de cesariana. Foi se criando o conceito de que o corpo da mulher é defeituoso e requer assistência. Que ela precisa ser cortada em cima ou embaixo para poder parir”.
Um médico obstetra com 15 anos de formação, que atende a convênios e preferiu ter sua identidade preservada, confirma a fala de Jorge Kuhn.
Ele explica que com o valor irrisório pago pelos convênios (cerca de 300 reais por parto normal ou cesárea) não compensa para o profissional largar o consultório cheio ou sair de casa de madrugada para passar 10, 12 horas acompanhando um parto normal. “Eu digo para as minhas pacientes logo nas primeiras consultas que se elas optarem por marcar uma cesariana eu farei, mas se optarem por um parto normal vão ter com plantonista”. Para ele, apesar das pesquisas e das indicações internacionais como a da OMS, a cesariana é a melhor opção para a mãe e o bebê. “No hospital particular eu acho que acontece o real parto humanizado. Porque tem uma assistência muito maior. Com 5 para 6 cm de dilatação a gente instala a anestesia, aí a paciente já não sente dor, faz a tricotomia (raspagem dos pêlos) porque é mais higiênico, rompe a bolsa, acelera o trabalho de parto. Minha filha nasceu por cesárea, minhas sobrinhas também. Se eu achasse tão bom o parto normal teria feito. Claro que se o médico marcar a cirurgia para muito antes, o bebê pode nascer prematuro, com problemas respiratórios, pode complicar sua saúde a longo prazo. Mas no parto normal existe mais risco de asfixia e paralisia cerebral. Se você for perguntar, 90% dos filhos de médicos nascem por cesárea”.
Jorge Kuhn, que foi recentemente denunciado pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro e responde a processo no CREMESP por ter declarado em um programa de televisão ser favorável ao parto domiciliar para gestantes de baixo risco, lembra que para o hospital também é muito mais lucrativo e conveniente que se façam cesarianas. “Eles sabem quais são os recursos humanos e materiais que têm em vésperas de feriados, principalmente os mais prolongados, e têm os agendamentos da sala certinhos. Fazer uma cesariana em trabalho de parto resulta em maior custo para o hospital. Quando a mulher ficou tantas horas em trabalho de parto e passa para uma cesárea, isso é um problema. Uma vez eu perguntei para um gestor quanto eu custava, fazendo mais partos normais. Ele disse que o problema é quando meus partos normais viravam cesareas, porque já tinha gasto tempo e material naquele parto e gastava com a cirurgia. Mas tanto faz em termos de custo. O agendamento que facilita. Nenhum hospital no Brasil tem condições de atender partos normais como a OMS aceita, com no máximo 15% de cesarianas. Não têm estrutura física para isso, é uma formula difícil de fechar. Mas basicamente é uma tríade: comodidade dos médicos e hospitais, indiferença das mulheres e mercado. Sempre é uma questão de dinheiro”.
Ana Cristina acrescenta que quanto mais complicado for o parto, mais lucro o hospital terá. “anestesia, cirurgia, drogas, antibioticos, compressas, equipamento, equipe de enfermagem. Se rolar uma UTI neonatal por dois dias, já vai mais uma boa grana, quase a de um parto. E esses equipamentos todos da UTI estão pagos, precisam ser usados para gerar lucro. A UTI custa muito caro. Então qual é o problema? É que nós estamos colocando bebês para nascer em uma estrutura muito cara, que precisa se pagar”.
Para incrementar, alguns hospitais particulares oferecem alguns “extras” a seus pacientes, conta Simone Diniz. “Existe uma coisa chamada ‘janela de plasma’, que fica no centro cirúrgico e dá para um pequeno auditório anexo. É uma janela opaca que fica transparente quando o bebê nasce e o médico pode apresentá-lo à plateira. Algumas famílias fazem festas, com serviço de catering etc. Isso não pode acontecer em um parto normal, certo? Precisa ser agendado com antecedência. Aí você vê como hoje o parto fisiológico é subversivo, porque subverte toda essa lógica hospitalocêntrica”.
Alternativa subversiva
O modelo alternativo, hoje conhecido como parto humanizado, se baseia em exemplos usados há muitos anos em países como Holanda e Alemanha, e é centrado na autonomia da mulher, pensando o parto como algo fisiológico, natural, com pouca ou nenhuma intervenção médica. O direito da mulher sobre o seu próprio parto também é uma das principais bandeiras de um movimento feminino que cresce a cada dia no Brasil, principalmente através de blogs e articulações por redes sociais.
No filme inglês Freedom For Birth, que conta a história da parteira húngara Ágnes Geréb, processada criminalmente e condenada a dois anos de prisão porque, até 2011, não havia regulamentação para os profissionais que assistiam partos domiciliares, a antropóloga americana Robbie Davis-Floyd critica o modelo atual, em que o corpo da mulher é tratado como uma máquina, e o parto como um processo mecânico disfuncional, que precisa das intervenções médicas para trazer o bebê ao mundo porque não confia na fisiologia natural do parto. Em seu estudo “Birth as an American rite of passage (1984)” ela lembra que o parto, até pouco tempo, era vivido como algo exclusivamente feminino e privado, com as mulheres dando a luz em suas casas amparadas por outras mulheres: parteiras, mães, amigas mais experientes. A ideia de “mulher empoderada”, que escolhe onde, como e com quem quer parir, ou no mínimo opina a quais procedimentos quer ou não se submeter é o centro deste pensamento.
O parto humanizado pode acontecer em casas de parto, em casa (somente para gestantes de baixo risco) e até em salas especiais que muitos hospitais estão criando com esta finalidade. A equipe geralmente é reduzida, com uma enfermeira obstetra (ou médico que siga esta filosofia), um neonatologista e uma doula – profissional treinada a dar suporte físico e emocional à mulher desde o pré-natal. Na hora do parto, a doula orienta sobre exercícios e posições, respiração e fornece um arsenal de recursos não farmacológicos para alívio dor, como massagens, bolas, óleos, exercícios e banhos. A mulher pode comer, tomar água, andar e ficar na posição que se sentir mais a vontade para parir. Cada vez mais mulheres têm optado por este modelo, mas nem todas têm acesso. Um parto domiciliar custa de 5 a 10 mil reais (somando os honorários de todos os profissionais). No hospital, além da equipe, é preciso pagar a internação em pacotes de parto, que podem custar em média mais 8 mil reais.
Apesar de em 2011 o governo federal ter lançado a Rede Cegonha, que tem como objetivo humanizar o parto e criar casas de parto normal integradas ao SUS, ainda há poucas opções e somente em grandes centros urbanos – até 2014, segundo o Ministério da Saúde, serão 200 em todo o país. Com pouca ou nenhuma divulgação, sobram leitos em muitas delas. A Casa de Parto de Sapopemba em São Paulo, por exemplo, referência no atendimento a gestantes de baixo risco, não só não é divulgada, como não se consegue entrevistar os profissionais que atendem na Casa. Alertada por colegas jornalistas, eu tentei entrar em contato através da assessoria de imprensa da prefeitura mas não obtive resposta, apesar da insistência. Durante a reportagem, conheci uma enfermeira obstétrica que foi demitida por ter concedido entrevista a um jornal sem autorização. Uma reserva que faz lembrar o que acontece com os programas de redução de danos – cala-se a respeito para evitar polêmica, ou a adesão excessiva em relação às dimensões previstas por essas políticas públicas.
Simone Diniz conta que a própria mulher que resolve esperar o trabalho de parto é hostilizada. “As pesquisas indicam que entrar em trabalho de parto aumentam muito o risco de você sofrer violência. É muito interessante o grau de hostilização da mulher em trabalho de parto. No setor privado, acham o fim da picada que aquela mulher queira dar trabalho para eles. Uma mulher contou que como insistiu muito com o médico que queria parto normal, ele indicou um psicólogo dizendo que ela tinha traços masoquistas!” O Conselho Federal de Medicina é totalmente contra o parto domiciliar. Assim como os conselhos regionais que quiseram caçar o registro de Jorge Kuhn. O Conselho de Enfermagem (COFEN) também tentou por muito tempo fechar o novo curso de obstetricia da USP Leste, mas desde dezembro de 2012, o curso ganhou, através de liminar do Ministério Público, não só o direito ao funcionamento como ao registro específico no COFEN.
Por mim você pode cortar a mulher em quatro…
Essa “caça às bruxas do parto humanizado” não é exclusividade brasileira – vide Àgner Gereb. Jorge Kuhn conta que quando chegou ao Brasil após uma temporada aprendendo sobre parto humanizado na Alemanha, foi procurar os gestores de grandes hospitais para implantar essas técnicas de redução de cesarianas, mas que foi recebido com declarações como “por mim você pode cortar a mulher em quatro desde que me entregue um bebê bom”. Ainda assim, o obstetra é otimista: “O filósofo Schopenhauer dizia que toda verdade passa por três estágios: No primeiro, ela é ridicularizada. No segundo, é rejeitada com violência. No terceiro, é aceita como evidente por si própria. Estamos no segundo estágio”.
Outra alternativa bonita para quem procura por um parto “empoderado” (no sentido de dar poder à mulher sobre o parto) é a Casa Ângela, em São Paulo. Criada pela Associação Comunitária Monte Azul, a Casa de Parto, instalada na periferia da zona sul da cidade, se mantém com financiamentos de parceiros nacionais e internacionais e, desde o começo de 2012, faz uma média de 10 partos por mês, e acompanha mais de 250 mães e bebês. O nome homenageia a parteira alemã Ângela Gehrke, que nas décadas de 1980 e 1990, atendeu a mais de 1500 mulheres da favela Monte Azul e foi referência de parto humanizado no Brasil. Ângela morreu de um câncer em 2001 mas o trabalho com a comunidade foi retomado alguns anos depois.
A casa é linda, iluminada, arejada e no dia que visitei, um cheiro de bolo assando perfumava o ambiente. Nada ali lembrava o ambiente hospitalar. Anke Riedel, obstetra coordenadora do projeto, me conta que por causa da grande procura de mulheres de outras regiões e até outras cidades, a casa criou um plano de sobrevivência, no qual cobra um pequeno valor para quem não é da comunidade. O pacote padrão, que inclui o pré-natal, a triagem para fatores de risco no parto (as regras são rígidas e somente as gestantes que não apresentam riscos podem ser atendidas na casa), o parto e o acompanhamento do puerpério e do bebê por um pediatra, custa 3.500 reais, que pode ser negociado conforme as condições financeiras do casal. “Como não recebemos qualquer ajuda do governo, essa foi a forma que encontramos de manter a casa e poder atender às gestantes, além do apoio dos parceiros”. Na equipe, obstetrizes atendem às gestantes e, em casos de urgência, a casa possui equipamento e ambulância próprios para remoções para hospitais próximos. Segundo Anke, algumas vezes estas remoções acontecem, mas nunca houve uma de urgência.
Em vez de maca e soro, uma leoa com o bebê nos braços
Fui convidada a conhecer Aline, de 26 anos e seu marido Marcos, da mesma idade, moradores da comunidade que tiveram seu bebê na casa na noite anterior. Quando entrei no quarto, a primeira surpresa. Nada de maca ou soro. Apenas um casal deitado em uma cama com o bebê nos braços, com luz baixa e largos sorrisos no rosto. Aline me mostrou a pequena Sofia, que veio ao mundo sem qualquer intervenção médica ou farmacológica. Ela conta que o bebê nasceu na banheira, à luz de velas e música ambiente, com o marido fazendo massagem e ajudando nas posições. Que se apaixonou pela Casa assim que conheceu a proposta e que durante o pré-natal, ela foi bem orientada e tratada pelo nome, ao contrário do atendimento no posto de saúde em que era uma “mãezinha”.
Um nó aperta minha garganta, é impossível não fazer comparações. Marcos diz que estava orgulhoso da mulher, que mais parecia uma leoa poderosa no parto. Compara ao que já tinha visto na televisão ou nas novelas: “Aquelas mulheres gritando, deitadas, aquele desespero. Nada disso aconteceu. Teve hora que a enfermeira abraçava, dava beijo na testa dela, esse afeto fez diferença. No hospital você fica vendo seu parto acontecer.” Flashes do meu parto não param de vir à mente. Sou feliz por Aline e Marcos. E muito revoltada por mim mesma. Vendo e ouvindo essas histórias de amor, assistindo a vídeos de partos humanizados, dignos, nos quais as mulheres foram protagonistas do nascimento dos seus filhos, só posso chegar a uma conclusão: Violaram meu momento. Roubaram meu parto de mim.
* Infográficos de Emídio Pedro
Mapa da Violência obstétrica: denúncias pela internetDepois de um parto traumático e extremamente violento e um segundo humanizado, empoderado e em casa, Isabella Rusconi e Carlos Pedro Sant’Ana criaram o Mapa da Violência Obstétrica. A ferramenta é inédita no Brasil e permite ao internauta denunciar onde e quais tipos de violência obstétrica sofreu. “Acredito que um dos melhores modos de ter uma leitura real de um problema é mapeando situações, dando uma leitura gráfica do problema para facilitar a sua compreensão” explica Carlos. “Embora seja um problema invisível para muita gente —principalmente para os homens— e silenciado por muitas mulheres —por vergonha ou por desconhecimento de que foi vitima— é necessário mostrar que é uma realidade agressiva no Brasil e mostrar que existem alternativas, que é necessário criar um novo sentido de respeito humano e mudar o modo como lidamos com o parto. Talvez mostrando relatos de vitimas da violência obstétrica, possamos chegar a outras mulheres que passaram por essa violência sem o saber ou sem o reconhecer, e as arrancar de sua Sindrome de Estocolmo”…
Quanto custa nascer no Brasil? *SUS – grátis, independente do tipo de partoHospitais particulares com médicos particulares – de 10 a 30 mil reais o pacote de parto que inclui equipe médica e internação.Independente do tipo de parto (cesarea, normal ou humanizado). Se houver complicações no parto, mãe ou bebê precisarem de UTI o valor pode triplicar.Hospitais particulares, via convênio médico – cesareas marcadas muitas vezes são cobradas à parte, no valor médio de 3 mil reais. Cesareas em trabalho de parto e partos normais geralmente são atendidos por plantonistas e não são cobrados à parte.Parto domiciliar (com o mínimo de intervenções para gestantes de baixo risco) com enfermeira obstétrica e doula – de 3 mil a 5 mil reais em média ; Com médico e doula – 10 a 15 mil reaisParto em casa de parto humanizado ONG – cerca de 3 mil reais incluindo pré-natal, parto com enfermeira obstetra e atendimento pós parto com pediatra durante o puerpério.Quanto ganham os médicosParticulares (independente do tipo de parto) – de 8 mil a 20 mil reais por procedimento.SUS (por plantão, período de 12 horas) – R$ 700 (valor médio)Saúde suplementar –R$ 300 por parto normal e R$ 240 por cesariana (valores médios)*Fontes: ANS, MS e profissionais de saúde
São atos de violência obstétrica*:
- Impedir que a mulher seja acompanhada por alguém de sua preferência, familiar de seu
círculo social
- Tratar uma mulher em trabalho de parto de forma agressiva, não empática, grosseira,
zombateira, ou de qualquer forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido
- Tratar a mulher de forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e
diminutivos, tratando-a como incapaz.
- Submeter a mulher a procedimentos dolorosos desnecessários ou humilhantes, como
lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos, posição ginecológica com portas abertas
- Impedir a mulher de se comunicar com o "mundo exterior", tirando-lhe a liberdade de
telefonar, usar celular, caminhar até a sala de espera, etc
- Fazer graça ou recriminar por qualquer característica ou ato físico como por exemplo
obesidade, pelos, estrias, evacuação, etc.
- Fazer graça ou recriminar por qualquer comportamento como gritar, chorar, ter medo,
vergonha, etc.
- Dar bronca, ameaçar, chantagear ou cometer assédio moral em qualquer mulher/casal
por qualquer decisão que ela possa ter tomado, quando essa decisão for contra as crenças,
fé ou valores morais de qualquer pessoa da equipe, por exemplo: não ter feito ou ter feito
inadequadamente o pré-natal, ter muitos filhos, ser mãe jovem (ou o contrário), ter tido
ou tentado um parto em casa, ter tido ou tentado um parto desassistido, ter tentado ou ter
efetuado um aborto, ter atrasado a ida ao hospital, não ter informado qualquer dado, seja
intencional, seja involuntariamento
- Fazer qualquer procedimento sem explicar antes o que é, por que está sendo oferecido e
acima de tudo, SEM PEDIR PERMISSÃO
- Submeter a mulher a mais de um exame de toque (ainda assim quando estritamente
necessário), especialmente por mais de um profissional, e sem o consentimento, mesmo
que para ensino e treinamento de alunos
- Dar hormônios para tornar mais rápido e intenso um trabalho de parto que está
evoluindo normalmente
- Cortar a vagina (episiotomia) da mulher quando não há necessidade (discute-se a real
necessidade em mais que 5 a 10% dos partos)
- Dar um ponto na sutura final da vagina de forma a deixá-la menor e mais apertada para
aumentar o prazer do cônjuge ("ponto do marido")
- Subir na barriga da mulher para expulsar o feto (manobra de Kristeler)
- Submeter a mulher e/ou o bebê a procedimentos feitos exclusivamente para treinar
estudantes e residentes
- Permitir a entrada de pessoas estranhas ao atendimento para "ver o parto", quer sejam
estudantes, residentes ou profissionais de saúde, principalmente sem o consentimento
prévio da mulher e de seu acompanhante com a chance clara e justa de dizer não
- Fazer uma mulher acreditar que precisa de uma cesariana quando ela não precisa,
utilzando de riscos imaginários ou hipotéticos não comprovados (o bebê é grande, a bacia
é pequena, o cordão está enrolado)- Submeter uma mulher a uma cesariana desnecessária, sem a devida explicação dos
riscos que ela e seu bebê estão correndo (complicações da cesárea, da gravidez
subsequente, risco de prematuridade do bebê, complicações a médio e longo prazo para
mãe e bebê)
- Submeter bebês saudáveis a aspiração de rotina, injeções e procedimentos na primeira
hora de vida, antes que tenham sido colocados em contato pele a pele e de terem tido a
chance de mamar.
- Separar bebês saudáveis de suas mães sem necessidade clínica
Se você, mulher, foi submetida a qualquer um desses atos de violência, denuncie. Não
permita que a violência se perpetue. Será necessário que milhares de mulheres se ergam e
digam basta, até que as mulheres parem de sofrer. O parto é um momento de alegria, de
prazer. A dor fisiológica é suportável. Mas a dor da violência, essa pode se tornar
insuportável e deixar profundas marcas.
Para denunciar:
1) Exija seu prontuário no hospital (ele é um documento seu, que fica depositado no
hospital, mas as cópias devem ser entregues sem questionamento e custos)
2) Escreva uma carta contando em detalhes que tipo de violência você sofreu e como se
sentiu.
---> Se o seu parto foi no SUS, envie a carta para a Ouvidoria do Hospital com cópia para
a Diretoria Clínica, para a Secretaria Municipal de Saúde e para a Secretaria Estadual de
Saúde.
---> Se o seu parto foi em hospital da rede privada, envie sua carta para a Diretoria
Clínica do Hospital, com cópia para a Diretoria do seu Plano de Saúde, para a ANS
(Agência Nacional de Saúde Suplementar) e para as Secretarias Municipal e Estadual de
Saúde. Existem outras instâncias de denúncia, denpendendo da gravidade da violência
recebida, mas um advogado deveria ser consultado.
*Ana Cristina Duarte
“Não me corta!” Mulheres imploram, mas mesmo assim são mutiladas durante parto normal
RITA LISAUSKAS
03 Fevereiro 2015 | 09:41
http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/ser-mae/nao-me-corta-mulheres-imploram-mas-mesmo-assim-sao-mutiladas-durante-parto-normal/
Com Camila Colaço, 25 anos, a sequência foi quase a mesma: Chegou ao Hospital Evangélico de Curitiba com a filha já “coroada”, ou seja, a cabeça da bebê já podia ser vista. A médica também não consultou a paciente para fazer a episiotomia e o procedimento também foi feito sem anestesia. “Meu parto foi muito rápido. Eu deitei na maca e na primeira força minha filha nasceu. Não havia a menor necessidade do corte”, lembra.
“Desde a década de 80 existem evidências científicas sólidas indicando que a episiotomia traz à mulher mais danos do que benefícios”, afirma Simone Diniz, médica e professora de saúde materno-infantil na Faculdade de Saúde Pública da USP, Universidade de São Paulo. “A mulher tem mais dor no pós-parto e maior demora ao retornar à vida sexual. Por isso o uso rotineiro foi formalmente desaconselhado já que piora a vida das mulheres, dos bebês e também dos maridos”, completa. A episiotomia, contudo, está incluída no pacote de assistência ao parto do SUS, Sistema Único de Saúde como parte do atendimento padrão. Também é amplamente praticado nos poucos partos normais feitos na rede particular.
A pesquisa “Nascer no Brasil”, coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz, mostra que no período de 2011/2012 mais da metade das mulheres que optaram pelo parto normal sofreram esta intervenção. Diante do risco desses danos genitais, muitas mulheres terminam preferindo uma cesárea. “Mesmo quando as mulheres manifestam verbalmente ou por escrito a sua vontade de não ter uma episiotomia, não raro esta cirurgia é feita contra a vontade delas”, afirma a médica.
Foi o que aconteceu com Natália Leal, 25 anos, mãe de Pietro. “Passei a gestação toda falando pra minha médica que não autorizava nenhum tipo de intervenção e ela aparentemente concordou”, lembra. Na hora em que a filha estava para nascer no Hospital Ipiranga, na cidade de Mogi das Cruzes, em São Paulo, Natália viu a médica pegando um instrumento que não sabe dizer se era uma tesoura ou bisturi. “Disse que eu não queria ser cortada”, conta. “Ela me pediu que ficasse calma e que era só um ‘pique’ pra ajudar meu bebê a nascer. Na hora as lágrimas escorreram e eu quis gritar, levantar dali, sair correndo, mas não deu tempo. Senti o corte e na contração seguinte meu filho nasceu”, lembra. Natália diz que sente dores durante as relações sexuais até hoje.
Milena e Camila ainda ouviram suas médicas darem uma ordem inusitada aos residentes. “Ela pediu que ele desse também ‘o ponto do marido’, que eu não sabia o que era”, lembra Milena. Camila urrava de dor enquanto o tal ponto era feito. O “ponto do marido” é um “ponto a mais” feito para deixar a vagina mais fechada que o necessário. “Em tese para que o homem tenha mais prazer sexual”, explica a médica. Só que uma vagina apertada demais é um tormento para a mulher. “É um resquício de uma visão machista, um vexame, além de obsoleto, incorreto e agressivo”, resume.
O corte no períneo e o “ponto a mais” impediram Milena e o marido de voltarem a ter relações sexuais satisfatórias. “Todas as vezes que transava era com muita dor. Isso durou mais de um ano e eu passei a não me interessar mais por sexo”, conta. O marido começou a sentir ciúmes, começou a duvidar da fidelidade dela. Três anos depois, o casal se separou.
No pós-parto Camila não conseguia se sentar para amamentar a filha ou ficar de pé para dar banho na bebê. As relações sexuais só foram possíveis oito meses após o parto e até hoje, quase três anos depois do nascimento de Isabella, ainda são muito doloridas. Camila procurou ajuda e ouviu da ginecologista que precisa de uma cirurgia plástica no períneo, mas não tem condições de pagar pelo procedimento. “Eu me sinto humilhada porque fui mutilada sem necessidade alguma. Meu parto foi rápido”, lembra. O casamento está estremecido. “Minha libido diminuiu e eu não tenho vontade de fazer sexo. Ter relações sexuais com dor não é fácil”.
“Não há justificativa para episiotomia de rotina. Ela é recomendada de 15 a 30% dos casos, apenas quando há evidência de sofrimento fetal ou materno”, garante a médica. “A grande maioria das mulheres pode ter um parto vaginal seguro e satisfatório com melhor tônus vaginal após o parto do que antes se receber assistência baseada em evidências científicas e forem respeitados os seus direitos sexuais e reprodutivos”, completa Simone Diniz. Existe a possibilidade de laceração do tecido do períneo na hora da saída do bebê durante o parto normal, e aí sim os profissionais que acompanham o procedimento têm de fazer a sutura. Mas geralmente são menos pontos do que os necessários para fechar o corte da episiotomia.
Milena se casou de novo e teve mais dois filhos. Conseguiu que o marido estivesse ao seu lado nos partos seguintes, não foi amarrada pelas pernas ou sofreu a manobra de Kristeller, episiotomia ou “ponto do marido”. “Meus filhos mais novos nasceram pelo menos meio quilo mais gordinhos que o Pedro”, conta. Mesmo assim nenhuma intervenção foi necessária no parto normal. A vida sexual dela e do marido vai muito bem, obrigada.
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Veja também: O Fla x Flu do parto
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