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QUARTA-FEIRA, 5 DE NOVEMBRO DE 2014
UM CHOCANTE SUICÍDIO ACADÊMICO
Anteontem, tarde da noite, pouco depois de eu voltar pra casa do trabalho, recebi um tuíte-denúncia de uma leitora. Ela explicava o que havia acabado de acontecer na sua universidade, a Federal do Espírito Santo (UFES): um professor deixou alunos revoltados ao adotar um discurso racista.
Publiquei então este tuíte, um resumo do que a moça tinha me dito:
Um pouco depois, ela me enviou uma matéria de jornal, a primeira a noticiar o caso.
A matéria ainda não dava o nome do professor, mas já reproduzia o que ele disse em sala de aula -- entre outras coisas, que "detestaria ser atendido por um médico ou advogado negro". A essa altura, os alunos não haviam feito ainda denúncia à Ouvidoria da universidade.
Porém, na noite seguinte, a mesma leitora me enviou uma outra matéria daGazeta, com o título "'Não é uma visão preconceituosa, é realista' diz professor acusado de racismo na Ufes". O professor em questão é o doutor em economia pela Universidade de Picardie, França, Manoel Luiz Malaguti, de Introdução à Economia Política. Ele gravou uma entrevista em vídeo para o jornal, e o que posso dizer é que este é um dos maiores suicídios acadêmicos que já presenciei.
Vou transcrever quase tudo: "No meio de uma discussão sobre cotas e o sistema educacional, eu coloquei que, se eu tivesse que escolher entre dois médicos, um branco e um negro, com o mesmo currículo, eu escolheria o branco. Por que eu escolheria o branco? Os negros, em média, eles vêm de sociedades, de sociedades mesmo às vezes, comunidades, menos privilegiadas, pra gente não usar um termo mais forte, e nesse sentido, eles não têm uma socialização primária, na família, que os torne, uh, receptivos, aos trâmites da universidade, à forma de atuação da universidade, aos objetivos da universidade. E eles têm muito mais dificuldades pra acompanhar determinadas exposições. Eu não acho que é uma visão preconceituosa, eu acho bastante realista. A biologia, a genética, elas nos informam que até uma certa idade, sete anos no máximo, né, as conexões neurais já estão todas elas estabelecidas. Qualquer coisa que aconteça após os sete anos é uma influência da razão, do pensamento, tentando mudar os conceitos e pré-conceitos adquiridos nessa época chave. [...]
"Então é uma dificuldade muito grande pra você se livrar dos conceitos e preconceitos que uma família, uh, desprivilegiada, uma família sem acesso à cultura, sem acesso a literaturas, sem acesso a outros idiomas, sem acesso a meios de comunicação mais sofisticados, né, obviamente essas famílias terão maiores dificuldades para enfrentar um curso universitário naquilo que ele se propõe: entender o universo, e como consta no estatuto e no regulamento da universidade. Então só digo isso: há uma maior dificuldade do cotista negro, tá, não quer dizer que ele é inferior, que ele é superior, nada disso, ele simplesmente nasceu numa situação de desigualdade social em relação aos outros alunos brancos e que não sejam cotistas, então eles apreendem com maior facilidade. [...] Eu falei: EU, por exemplo, essa foi a colocação, ao escolher, tanto advogados quanto médicos, né, escolheria os brancos e não os negros".
Cartaz espalhado pela Ufes |
O que mais me espanta é que ele repete calmamente pra câmera tudo o que os alunos o acusaram de dizer. Geralmente, quando alguém faz uma declaração dessas, ele nega ter dito o que disse, ou se explica dizendo que não foi bem isso que ele quis dizer, ou que foi mal interpretado, ou que foi irônico, ou que era uma piada. Mas não. Este professor apenas nega que tenha dito que "detestaria" ser atendido por um médico negro. De todo o discurso preconceituoso, ele só tem problema com o verbodetestar.
Ontem perguntei à leitora que me pôs a par de todo esse imbroglio se ela era aluna do professor e se havia testemunhado isso tudo em sua aula. Ela respondeu que não, que seu namorado é aluno dele. E me enviou a nota à imprensa que os alunos emitiram, já que nenhum deles quer falar individualmente:
De minha parte, como professora universitária, parabenizo os alunos da Ufes por não se calarem, por não temerem retaliações, e por denunciarem um racismo mais do que evidente. A universidade afirmou que dará início ao procedimento padrão: uma sindicância para analisar o caso e, dependendo do resultado, a abertura de um inquérito administrativo que pode resultar em exoneração. Não vai haver muito para analisar, pois o professor repetiu para uma câmera o que indignou os alunos.
Como um sujeito que escreveu um livro chamadoNeoliberalismo: a tragédia do nosso tempo (1998) podepensar assim? Ou ele foi pro outro lado do espectro político nesses últimos dezesseis anos (porque suas palavras são típicas de pessoas de direita), ou... Nem sei a segunda opção. Claro, até existe gente de esquerda contra as cotas, mas é chocante ver um professor de Ciências Sociais, de Economia, dizer que famílias negras não têm acesso à cultura. De qual cultura você está falando, cara pálida? Espera-se que uma pessoa com graduação em economia tenha tido bastante aula de sociologia para saber que não existem indivíduos sem cultura. A menos que o professor esteja se referindo a uma cultura elitista que dita, por exemplo, que música erudita é cultura, mas funk e pagode, não.
Ainda assim, é chocante ver um professor dizer com quase todas as letras que a universidade não quer e não pode comportar esses jovens pobres e negros que não tiveram acesso a "meios de comunicação mais sofisticados" (quais seriam esses meios, a Veja?) ou a "outros idiomas".
Que a universidade é excludente e classista, não há o que discutir. Basta olhar em volta para constatar que só nos últimos anos é que começaram a entrar mais alunos negros nas salas de aula. Professores negros ainda não há, ou há pouquíssimos (0,2% dos professores da USP são negros. Não chega a 1%). É só olhar em volta para perceber que as universidades públicas atendem em sua maioria os alunos de classe média e alta que fizeram o ensino médio em escolas particulares. A política de cotas é justamente para tentar reverter esse quadro, para tentar criar uma universidade mais democrática, mais inclusiva.
É impressionante que o professor veja os cotistas negros como desqualificados, mas os cotistas brancos, advindos de escolas públicas, parecem terem tido, segundo o professor, as "conexões neurais" que permitem que estejam aptos a acompanhar sem tantas dificuldades os "trâmites" de universidade. Como o professor não percebe seu desastroso discurso como racista?
O que o professor falou não pode ser visto sob a ótica da sempre alegada "liberdade de expressão". Não há, ou não deveria haver, liberdade para ser racista numa sala de aula. O doutor não foi apenas preconceituoso, como também disse que optaria por discriminar negros. O preconceito pode ser a teoria, e a discriminação, a prática. Ao dizer que não escolheria um médico ou advogado negro, o professor está dizendo que não teria problema algum em discriminar. É de se imaginar como ele trata seus alunos negros, alunos que, por sua definição, não deveriam estar lá.
Abrir as portas das universidades para alunos negros e pobres é um primeiro passo fundamental. Mas há também que se abrir a cabeça de professores como este doutor em economia. O mundo mudou, professor. Não pode haver mais espaço para preconceito numa sala de aula.
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