PANÓTICO I - A Gênese e as Prisões
O panóptico de Jeremy Bentham é uma composição arquitetônica de cunho coercitivo e disciplinatório: possui o formato de um anel onde fica a construção à periferia, dividida em celas tendo ao centro uma torre com duas vastas janelas que se abrem ao seu interior e outra única para o exterior permitindo que a luz atravesse a cela de lado a lado.
Na torre central deve-se colocar então um vigia e em cada cela trancafiar um condenado, louco, operário ou estudante: através do jogo de luzes, torna-se impossível ao detento, escolar ou psicótico saber se naquele ponto central está ou não alguém à espreita. Isolados, os condenados ou doentes ou os alunos são hora após hora, dia após dia expostos à observação dos mestres do panóptico, mas sem saber se a vigilância é ininterrupta ou não, quem os vê ou o que vêem. A incerteza da vigilância intermitente adestra.
Diz Michel Foucault em seu Vigiar e Punir de 1975:
Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se todas as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.
Inaugura-se a partir da inspiração do filósofo e jurista inglês uma nova concepção de controle e castigo. Aos finais do século XVII a instituição carcerária vivia sua fase embrionária: para trás desta época, a privação da liberdade não constava na lista de penas; o condenado deveria reparar à parte lesada através da condenação fosse pelo pagamento de multa, por seu banimento (degredo) ou sua morte (possivelmente na forca).
Com o processo de refinamento das prisões, o delinqüente começa a ser apartado do convívio social, isolado numa referência clara ao tratamento reservado aos leprosos até então. Estado – e, por conseguinte a sociedade – passam a assumir a responsabilidade da criação do “mal indivíduo”e toma para si o papel de rediscipliná-lo ou retira-lo completamente do convívio social (sendo possível sua reinserção na comunidade) já que o espetáculo da condenação à morte, após a Declaração dos Direitos do Homem, passou a ser chocante demais para as novas sensibilidades. Mas a proximidade com o indivíduo criminoso estava também fora de cogitação.
Como solução, cadeias foram construídas em lugares distantes, ermos, e logo se tornaram os depósitos humanos que Foucault chamou de “massas compactas, fervilhantes e pululantes”.
O panoptismo então emerge como marco implantador da organização inserindo, em lugar da desordem, classificação, divisão, caracterização, vigilância e identificação tornando possível o florescimento assim do controle individual em punições imediatas.
Gradativamente, mais do que uma ferramenta jurídica, ele passa a servir às nascentes instituições psiquiátricas, escolas, fábricas, agremiações religiosas e onde mais pudesse ser aplicado.
O PANÓTICO II - As Instituições Médicas
Hôtel Dieu França
A substituição dos grandes estabelecimentos amontoados e desorganizados – como era o hôtel Dieu em Paris, uma espécie de lugar para se cair morto – por pequenos prédios que passaram a atender a demanda dos bairros separando e agrupando seus doentes (que agora chegavam com alguma esperança de saírem), para reunir informações, controlar epidemias e manter as autoridades informadas sobre o estado sanitário de cada região, mostra o quanto o modelo panóptico foi adaptado com as conformidades e preocupações da época. Por exemplo, a separação dos doentes segundo a endemia (e posses) evita infecções e a temível contaminação por micróbios; outra verdadeira obsessão que quase tornou impossível a dissociação da figura do médico da do higienista, não só na Europa, mas em todo o mundo que queria-se civilizado.
O sujeito adoecido (agente transmissor de micróbios), o deficiente mental (agente transmissor de confusão), o deficiente físico (agente transmissor de vergonha)... Toda sociedade deveria naquele momento “ser limpa” desses elementos que só interferiam em sua coesão.
Antes escondidos em casa, os doentes e deficientes, num destino muito semelhante ao dos criminosos, são afastados e interditados, sendo levados para instituições em lugares distantes e “especializados” onde serão vigiados, educados e, sobretudo, impedidos de uma realocação na comunidade se considerados por seus tratadores como irrecuperáveis. Segundo o historiador Alain Corbain:
A presença do louco que se tornou adulto fica insuportável; na maioria das vezes, os que o cercam decidem afastá-lo, principalmente quando se trata de uma mulher solteira, menos útil que o homem na manutenção do grupo. Até a aplicação da lei de 1838, que define a condição de alienado, reina a mais perfeita anarquia neste terreno. Por iniciativa da família, a internação pode ser decidida por um simples certificado do prefeito, do padre, de uma religiosa ou de qualquer outro notável local.
Royal Infirmary, Edimburgo, plano arquitectónico de 1870
Particularmente essa máquina arquitetônica funciona bem e é amplamente difundida no tratamento dos loucos a começar pelo diagnóstico: o sistema social disciplinar, ao identificar um indivíduo não-coeso, que não infringe nenhum expediente legal, mas que ainda sim precisa ser redisciplinado para voltar ao esquema externo vigente, já tem a quem recorrer (!).
Ainda segundo Alain Corbain “a atenção para com os fenômenos psíquicos aumenta desmesuravelmente entre 1800 e 1914”. Desorientados e envolvidos numa série de sincretismos teóricos, os médicos alienistas trabalharam uníssonos e com afinco numa tal “evolução das moralidades”, assistindo ao longo de dois séculos a sua total ineficácia terapêutica.
O PANÓTICO III - Expansão e Epílogo
A última instância onde o panoptismo pôde chegar foi a invisibilidade; justamente o seu ponto ideal. A penetração por todas as instituições físicas minou para as não-físicas até que ele passou a estar em todos os lugares – e o que está em todos os lugares, costuma estar em parte alguma. A estrutura arquitetônica panóptica de Bentham pôs-se então a ser construída dentro das mentes oitocentistas.
A Declaração dos Direitos do Homem (1793) foi durante muito tempo ainda uma categoria indefinida e abstrata aos indivíduos - a crescente burguesia - que tentavam confusa e alegremente digeri-la. Entendem que, em suma, ela lhes deu direito a serem de si mesmos, a arquitetarem seus próprios destinos e a construírem suas próprias identidades. Assim, a privacy, a privacidade, tornou-se expressão da liberdade, do indivíduo, e incitou o advento da fotografia, dos diários, das confissões ao pé da sacristia, do estar-se só. A inviolabilidade do domicílio e o direito ao segredo de correspondência são reconhecidos - ainda que pouco praticados, há de se dizer -, o homossexualismo deixa de ser visto como um delito e lentamente os corpos passam a se fechar em seu próprio torno.
Mas, num movimento tanto paradoxal, a imprensa (apoiada por seus consumidores) passa a preocupar-se, a avidamente interessar-se pela vida privada alheia, tornando o vigiar um dever, não concernente apenas às autoridades, mas um direito de todos; o direito ao saber e à satisfação das curiosidades: “o inconveniente do reinado da opinião que busca a liberdade é que esta se intromete onde não deve: na vida privada”, diria Stendhal.
Até mesmo as autoridades passam a se beneficiar e a utilizar-se cada vez mais efusivamente das relações de interconhecimento; adotam o sistema de identificação individual como o Estado civil (1752), a carteira para os operários e para os militares, passaportes para os imigrantes, fichamento para as prostitutas e crianças abandonadas; vão dando nomes e rostos aos diversos pontos da rede que constituía então a comunidade urbana.
Quando se faz necessário aprofundar as informações contidas nesses cadastros, lá estão em cena as investigações da moralidade, os vigilantes às janelas, o prefeito, o padre, interrogando a vizinhança, levantando boatos que apontam a boa ou má fama de um pelo bem-estar de todos no malicioso desvendar da vida privada. Um controle da mente sobre a mente, como a descrição que Benthan fez de seu próprio aparelho.
A obsessão pelo saber e pelo conhecer acaba por provocar um novo fenômeno científico-jurídico onde a busca pelo identificar, caracterizar e controlar transformou-se num medonho espetáculo antropológico cuja intenção era o de livrar a sociedade de toda e qualquer “anomalia” ou “endemia” humana, tentando torna-se uma massa uniforme de seres idênticos, moralizada e sã; fosse através das prisões, dos hospitais, dos internatos ou simplesmente pelo banimento do convívio social com a comunidade numa constante do vigiar e do punir. Uma busca d’uma sociedade ideal que nunca existiu...
Publicado em arquitetura por Priscilla Santos
A conhecida “laborterapia” era usada na época como parte do tratamento da loucura, na crença de que era necessário evitar a ociosidade, a qual era perniciosa ao espírito do louco. Por meio do trabalho, retirava-se o louco de sua condição de criatura inútil, possibilitando a canalização da sua agressividade e, conseqüentemente, a cura. Dessa forma, os pacientes pobres e considerados indigentes eram forçados a trabalhos monótonos e repetitivos, sem remuneração, e faziam trabalhos pesados na lavoura, na área do hospital, e na confecção de tijolos, bonecos, tapetes e outros produtos que eram vendidos ou consumidos internamente.
Fonte: Centro Cultural da Saúde
Uma experiência terrível no Brasil:
Barbacena a cidade dos loucos
Barbacena situa-se na Serra da Mantiqueira, a 169 km da capital mineira e conta hoje cerca de 124.600 habitantes.
Esse município de clima ameno de montanha, com temperaturas médias baixas para os padrões brasileiros, recebeu a alcunha de “Cidade dos Loucos” durante longos anos. Esse título foi recebido em função dos sete hospitais psiquiátricos que abrigou. A justificativa técnica para a instalação de tantos manicômios no mesmo território deve-se à antiga crença, defendida por alguns médicos da época, de que o clima de montanha era salutar para os que carregavam doenças nervosas. Nesse clima, os loucos ficariam menos arredios e, supostamente, facilitariam o tratamento.
Outra versão conta que, ao perder a disputa política para Belo Horizonte de sediar a capital mineira, ganha, como “prêmio de consolação” os tantos hospitais psiquiátricos, dos quais ainda restam três na cidade.
O maior desses hospitais, hoje administrado pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG), começou a funcionar em 1903, numa imensa área rural (cerca de oito milhões de m2), nas terras da Fazenda da Caveira, que pertencera a Joaquim Silvério dos Reis – o delator da Inconfidência Mineira. As instalações desse hospital abrigaram anteriormente uma clínica de repouso e clínica para os nervos e, posteriormente, um Sanatório para Tuberculosos. Era uma instituição para ricos. Com a falência do sanatório, o prédio foi ocupado por um hospital psiquiátrico, em que os pacientes se dividiam em pagantes e indigentes.
A conhecida “laborterapia” era usada na época como parte do tratamento da loucura, na crença de que era necessário evitar a ociosidade, a qual era perniciosa ao espírito do louco. Por meio do trabalho, retirava-se o louco de sua condição de criatura inútil, possibilitando a canalização da sua agressividade e, conseqüentemente, a cura. Dessa forma, os pacientes pobres e considerados indigentes eram forçados a trabalhos monótonos e repetitivos, sem remuneração, e faziam trabalhos pesados na lavoura, na área do hospital, e na confecção de tijolos, bonecos, tapetes e outros produtos que eram vendidos ou consumidos internamente.
Em seu auge o hospital chegou a abrigar cerca de 5.000 moradores, os quais chegavam de todos os cantos do Brasil, apinhados em um trem que parava na frente dos pavilhões. Esse sinistro e terrível veículo ficou conhecido como “Trem de Doido”.
Do hospital, a maioria das pessoas não saía nunca mais. Muitos chegavam crianças e nunca mais viam suas famílias. Para lá, eram enviados meninos considerados pelos pais e professores como desobedientes; moças que, para a desgraça familiar, tinham perdido a virgindade ou que engravidavam sem estarem casadas; presos políticos e toda a sorte de “indesejáveis” na sociedade, dentre os quais também os sifilíticos e os tuberculosos.
Os internos viviam no hospital em estado de absoluto abandono. Perambulavam pelos pavilhões nus e descalços e eram forçados a comer comida crua, servida em cochos e sem talheres.
Para acomodar tanta gente nas instalações do hospital, as camas eram retiradas e feno era espalhado pelo chão. Tal estratégia chegou até mesmo a ser recomendada como medida em outros hospitais psiquiátricos da região. As pessoas dormiam todas juntas, amontoadas no piso do quarto sobre o feno. Conviviam com ratos, que lhes mordiam, com suas próprias fezes e urina e morriam às dezenas de diarréia, desnutrição, desidratação e de tantas outras doenças oportunistas. Estima-se que cerca de 60 mil pessoas morreram nesse hospital. Eram 60 óbitos por semana, 700 por ano.
Vários ex-internos se referem a um chá que era freqüentemente servido por volta da meia-noite e “estranhamente”, no dia seguinte, muitos amanheciam mortos e eram empilhados nos corredores e pátios do hospital.
Uma das histórias mais pavorosas conta que era prática corrente no hospital o método de “desencarnar” os mortos, o que consistia em colocá-los em tonéis com ácido para tirar-lhes a carne e vender os esqueletos às faculdades de medicina. Muitos internos participavam dessa função, “desencarnando” seus colegas mortos e muitas faculdades de medicina, em todo o Brasil, compravam os cadáveres de Barbacena para abastecer seus laboratórios de anatomia.
Os mais rebeldes ou aqueles que cometiam algum ato considerado pelos funcionários como insubmissão eram mantidos presos em celas gradeadas, algemados pelos pés e mãos, contidos por várias técnicas e métodos diferentes. Passavam por sessões de eletrochoque, das quais saiam mortos ou com dentes e ossos quebrados.
O hospital possuía um centro cirúrgico no qual eram realizadas as psicocirurgias, como a lobotomia, mais apropriadamente chamada de leucotomia. Esse procedimento leva a um estado de sedação, com baixa reatividade emocional dos pacientes, considerado como eficaz para a melhoria dos sintomas externos da doença psiquiátrica.
Em 1979, o conhecido psiquiatra italiano Franco Basaglia visitou o Hospital Colônia de Barbacena e o comparou aos campos de concentração nazistas de Adolf Hitler.
Postado por D. Toledo
Publicado em: http://psicologia-ro.blogspot.com.br
Ótima postagem, muito oportuna. (Romualdo)
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