Anti-heroi para parte do senso comum e para a grande parte da mediocridade política
http://www.josesaramago.org
José Saramago morreu no dia 18 de Junho de 2010. Nobel da literatura, génio das palavras, mestre do texto. Controverso, comunista, ateu. Um tributo à pessoa que marcou a história da literatura universal, que faz periclitar as bases da História e do senso comum, e que deu um novo sentido ao mundo e ao ser humano. Uma história de vida e uma obra imperdível, uma “viagem de elefante”.
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José Saramago morreu no dia 18 de Junho de 2010. Nobel da literatura, génio das palavras, mestre do texto. Controverso, comunista, ateu. Um tributo à pessoa que marcou a história da literatura universal, que faz periclitar as bases da História e do senso comum, e que deu um novo sentido ao mundo e ao ser humano. Uma história de vida e uma obra imperdível, uma “viagem de elefante”.
José Saramago morreu no dia 18 de Junho de 2010. Não sabemos se teve ou não um encontro com Deus, no céu, no inferno, ou no “desqualificado purgatório”, mas podemos ter a certeza que ambos precisavam de ajustar contas. Ateu convicto, José Saramago tem Deus como um dos temas-fetiche das suas obras. Era com Ele que gostava de conversar, era sobre as suas representações terrestres que dissertava com uma brilhante clareza interpretativa, muitas vezes recheada de causticidade, atraindo polémicas e excomunhões de muitos lados.
Saramago encontra-se agora, porventura, num, seu e claro, vazio inconsciente. Um vazio que se preenche, como acontece sempre com alguém literariamente famoso que perece, num crescendo de interesse limitado no tempo, como também sempre acontece com o interesse súbito pela obra do perecido que renasce no consciente colectivo, com as vontades de evasão do presente e da realidade quotidiana dos cultos e incautos mortais, com a leitura das suas obras. Agora encontra-se na escuridão da sua própria ausência, presente aos latejantes de vida na significância com que estruturou as letras, as mesmas peças com que jogamos o jogo da vida em verbo, sem, no entanto e inevitavelmente, a perícia da exposição do capital intelectual e a arte da construção literária saramaguiana, ou, talvez, o encontremos um dia a conversar com Blimunda Sete-Luas, num metafísico “Memorial do Convento” (1982), esta agora hiperciente da azáfama e dos interstícios da vida, e d’ “As Intermitências da Morte” (2005).
Apenas vagamente, conhecemos nós Saramago nos seus tempos de juventude. Sobeja um hiato temporal entre a primeira publicação do jovem escritor, bem depois das noites de sono partilhadas na cama com os avós Jerónimo e Josefa e os porcos, numa Azinhaga Ribatejana dos tempos da meia sardinha onde as pessoas eram constantemente “atiradas ao chão” por forças opressoras e esmagadoras, essa Azinhaga que o petrificou em estátua num banco de jardim, e a profícua e epopeica revolução literária, 30 anos depois.
Saramago não foi um académico e não ganhou prémios literários aquando da sua juventude. Saramago não foi sequer unanimemente querido, consensual, ou, como por vezes acontece nas esferas culturais e espectaculares, adulado. Terá inclusive dividido a população portuguesa, este anti-herói para parte do senso comum e para a grande parte da mediocridade política. Saramago não competiu o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa, porque não o deixaram. Os cordéis da manipulação literária e os senhores das marionetas políticas e religiosas não o permitiram. A humanização do mito de Jesus Cristo, n’ “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991), foi a desculpa para tentar olvidar o homem que pôs Portugal (no mapa) e Espanha, o iberismo saramaguiano, a navegar pelo oceano, na sua “Jangada de Pedra” (1986). Países à deriva na unificação atracada de uma Europa cada vez mais distante e, paradoxalmente, maior. Portugal é um estado laico. A separação dos poderes entre a igreja e o estado estão, há muito, constitucionalmente definidos e aprovados. A dissecação de Jesus Cristo, o desdobramento do mito, do homem-deus em homem-(demasiado)humano, colocou no parlamento uma inflamada discussão sobre se seria este Saramago um homem suficientemente português para representar uma nação tão histórica e histericamente conectada a um deus (pátria, família) que este homem, português de nascença é certo, não acreditava. Talvez não suficientemente português mas suficientemente reconhecido mundialmente, Saramago arrecadou o Nobel da Literatura em 1998 e, justiça divina, o Prémio Camões em 1995. Não se refugiou no país que não aceitava as suas ideias, vá, os seus romances misto fusional de uma realidade tépida e uma ficção transpirada, como se se tapassem as lacunas de realidades incertas com o vómito de tempos deploráveis. Não se refugiou sequer, nem o degredo psicológico parece ser um motivo. Não hoje. Saramago escolheu na sua ibéria o recanto de memória mais distante dos homens que o rejeitaram, perto daqueles que são “as maiores vítimas do capitalismo ocidental”. O destino foi Lanzarote, a poucos quilómetros da costa africana. Ilha perdida das Canárias, Espanha, inóspita. Um acaso desidratado, um pedaço de terra negra onde escolheu viver e amar. Temos a certeza que se a ibéria se desprendesse do resto da Europa, Lanzarote ficaria no sítio, a ver passar ao largo a sua assustadora alucinação tectónica. Em Lanzarote nasceu uma epidemia contagiosa que colapsa a sociedade, uma cegueira espontânea que viria a revelar o que de mais extremo veste o ser humano – da animalidade à racionalidade, da violação ao amor. Ainda assim, esta penosa experiência para o autor e para o leitor, o “Ensaio Sobre a Cegueira” (1995), é uma “longa tortura” que mostra que nós, humanos, “não somos bons”. Dos mesmos olhos que viveram a visão da escuridão mundial vieram as lágrimas, durante a apresentação da adaptação deste ensaio ao cinema, ao lado do director brasileiro Fernando Meirelles.
"ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA" - RESUMO FILME
Saramago foi, é e será tão importante para a literatura portuguesa e mundial como o foram Fernando Pessoa ou Carlos Drummond de Andrade. Eis o homem que quando fala não mede o comprimento do sentido das palavras, em oposição à medida do comprimento interpretativo da sua escrita. Um homem que “quando se enfurece é simpático”, um autoproclamado “pessimista pela razão, optimista pela vontade”. Saramago diz o que pensa e o pensamento dele ecoa em palavras não polidas, despidas, em construções sólidas da sua verdade. Sem medo. Assume-se como comunista, ponto. Não ortodoxo, ponto. A tudo isto se chama, supomos, liberdade de expressão. Liberdade essa que por entre tantos anos de luta parece ainda periclitar nas certezas de alguns eruditos.
Leia mais:
publicado em artes e ideias por miguel oliveira
http://obviousmag.org/archives/2010/07/jose_saramago_memorial_de_um_genio.html
UMA ANIMAÇÃO DE "A FLOR MAIS GRANDE DO MUNDO"
LIVRO INFANTIL DE SARAMAGO
FRASES DE JOSÉ SARAMAGO
POEMA "BELEZA INVISÍVEL"
Feito o arado que rasga a terra, a passagem do tempo deixa sulcos na alma e no rosto.
“As viagens sucedem-se e acumulam-se como as gerações; Entre o neto que foste e o avô que serás, que pai terás sido?”
A única coisa que nós temos de fato é a vida. E com ela podemos fazer tudo, ou nada.
Pais, filhos e netos.
Buscar uma experiência de significação, trilhar a senda do auto-aperfeiçoamento.
A vida é um instante, um sopro.
Quantas gerações já vieram e se foram,
quantas ainda virão e igualmente passarão…
Há quem sustente que é o amor das mães que mantém o mundo em seu eixo.
Memórias poéticas e afetivas.
Os pequenos gestos e instantes que se vestem de beleza e ternura o tempo.
O ato de observar é a única chave que abre a porta dos mistérios.
A paisagem de fora, a vemos com os olhos de dentro.
A paisagem é um estado de alma.
Na realidade, o que vemos está em nós.
Não vemos o que vemos, vemos o que somos…
“Se podes olhar, vê.
Se podes ver, repara.”
Cultivar a quietude do espírito
como potência de transformação.
Ter um olhar capaz de discernir a beleza invisível.
A filosofia oriental nos ensina que
a mais bela imagem não tem forma.
Resgatar a beleza, a poesia e a espiritualidade
capazes de suavizar a nostalgia do Absoluto.
Cativar a via do Silêncio
dentro de nós.
Esta existência terrena é uma
oportunidade de despertarmos
da letargia e do sono.
Esta existência terrena
é a infância da Eternidade.
Uma oportunidade para nos
aproximarmos da Pura Luz
que habita nossa finitude.
Felizes os que aproveitam
com sabedoria a preciosa
aventura que é o existir.
Feliz o olhar capaz
de discernir a beleza
do invisível...
José Saramago
(texto de
JOSÉ SARAMAGO)
" Que
Humanidade é Esta?"
Se o homem não for capaz de organizar a economia mundial de forma a
satisfazer as necessidades de uma humanidade que está a morrer de fome e de
tudo, que humanidade é esta? Nós, que enchemos a boca com a palavra humanidade,
acho que ainda não chegamos a isso, não somos seres humanos.
Talvez cheguemos um dia a sê-lo, mas não somos, falta-nos mesmo
muito. Temos aí o espetáculo do mundo e é uma coisa arrepiante. Vivemos ao lado
de tudo o que é negativo como se não tivesse qualquer importância, a
banalização do horror, a banalização da violência, da morte, sobretudo se for a
morte dos outros, claro. Tanto nos faz que esteja a morrer gente em Sarajevo, e
também não devemos falar desta cidade, porque o mundo é um imenso Sarajevo. E
enquanto a consciência das pessoas não despertar isto continuará igual. Porque
muito do que se faz, faz-se para nos manter a todos na abulia, na carência de
vontade, para diminuir a nossa capacidade de intervenção cívica.”
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