Comemorar o Medo
Para ver a intervenção de Mia Couto na conferência do
Estoril 2001 consultar:
Bom, Nada mais inseguro do que um escritor
numa conferência sobre segurança, um
escritor que se sente um pouco solitário porque foi o único convidado nesta e
na anterior edição… preciso de um abrigo, preciso de um refúgio… é um texto que
vou ler… o presidente tinha dito que eu devia falar espontaneamente... não sou
capaz em sete minutos. Eu escrevi este texto que vou ler e chama-se
Comemorar o Medo.
Comemorar o Medo
O medo foi
um dos meus primeiros mestres. Antes de
ganhar confiança em celestiais criaturas aprendi a temer monstros,
fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem.
Os anjos actuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença
entre sentimento e realidade.
Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinaram
a recear os desconhecidos. Na realidade a maior parte da violência contra as
crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e
conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em
ambiente que reconhecemos. Os
meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais
protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha
cultura, do meu território.
O medo foi afinal o mestre
que mais me fez desaprender. Quando
deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a
coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se
mais muros do que estradas. Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há
neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas. No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a
narrativa do medo tinha um invejável casting internacional.Os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela
independência e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os
fantasmas:morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram
restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes
respeitáveis e Carl Marx, o ateu barbudo, é
um simpático avô que não deixou descendência. O preço dessa construção
de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano.
Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no
poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história e, a mais grave
dessa longa herança de intervenção externa, é a facilidade com que as elites
africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos. A guerra fria esfriou, mas
o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do
medo a oriente e a ocidente e, por que se trata de entidades
demoníacas, não bastam os seculares meios de governação, precisamos de
intervenção com legitimidade divina. O
que era ideologia passou a ser crença. O que era política tornou- se religião. O que era religião passou a ser estratégia de
poder.
Para fabricar armas é preciso
fabricar inimigos. Para produz ir inimigos
é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um
dispendioso aparato e um batalhão de
especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que
nos dizem: Para superarmos as ameaças
domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e
menos privacidade.
Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de
mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem
que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia
começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que,
de um e de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”. Aos adversários políticos
e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento
que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a
humanidade,imprevisível. Vivemos como cidadãos e como espécie em
permanente situação de emergência.
Como em qualquer outro estado de sítio as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida
e a racionalidade deve ser suspensa.
Todas essas restrições servem para que não sejam
feitas perguntas, como por exemplo estas:
·
Por que motivo a
crise financeira não atingiu a indústria do armamento?
· Por que motivo se gastou, apenas no ano passado,
um trilião e meio de dólares em armamento militar?
·
Por que razão os
que hoje tentam proteger os civis na Líbia são
exactamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi?
·
Por que motivo se realizam mais seminários sobre
segurança do que sobre justiça?
Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança
mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e
urgentes.
Há uma arma de destruição maciça que está
sendo usada todos os dias, em todo o mundo,
sem que seja preciso o pretexto da guerra, essa arma chama-se fome! Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos
passa fome. O custo para superar a
fome mundial seria uma fracção muito pequena do que se gasta em
armamento. A fome será, sem dúvida, a maior
causa de insegurança do nosso tempo.
Mencionarei
ainda uma outra silenciada violência. Em todo o mundo uma em cada três mulheres, foi ou será, vítima de violência física
ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte do nosso planeta pesa uma
condenação antecipada pelo facto simples de serem mulheres.
A nossa
indignação porém é bem menor que o medo! Sem darmos conta fomos convertidos em soldados de umexército sem nome e, como militares sem
farda, deixamos dequestionar. Deixamos de fazer
perguntas e discutir razões. As questões de ética
são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque
estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de
legalidade.
É sintomático que a única
construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha, a
Grande Muralha, que foi erguida para
proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem
parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha
do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns
trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção.
Esses corpos convertidos em muro e pedra, são uma metáfora do quanto o medo
nos pode aprisionar. Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e
ricos mas não há hoje no mundo um muro que
separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do
norte, do ocidente e do oriente.
Citarei
Eduardo Galeano acerca disto, que é o medo global, e dizer: Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os
que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo
da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas
têm medo da falta de guerras e, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo
que o medo acabe.
Muito
obrigado!
Muito bom o texto, aliás... como todos, sempre bem oportuno para reflexão. (Romualdo)
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