TRAVESSEIRO SUSPENSO POR FIOS DE NYLON

sábado, 30 de junho de 2012

CANTO DE ANINHA - Cora Coralina POEMAS

(em construção...)



CANTO DE ANINHA

Éramos quatro as filhas de minha mãe.
Entre elas ocupei sempre o pior lugar.”

“...”Canto de Aninha”. Expressão polivalente, é extraída de Vintém de cobre(...) ... a voz lírica perde-se (ou ganha-se?) na contemplação de si mesma, uma vez que agora se trata de um olhar para dentro, rebuscando o seu sofrido e traumático universo interior, para o qual já aponta o primeiro poema “Minha Infância”. Após o título, subscreve, entre parênteses , uma propositada alusão ao pai da psicanálise: freudiana. O que se vê nesta seção é a menina mal-amada, discriminada, incompreendida, traumatizada. Atentem para ela sobretudo aqueles que sondam as profundezas da alma humana.” (Darcy França Denófrio)*




MINHA  INFÂNCIA
(Freudiana)
Éramos quatro as filhas de minha mãe.
Entre elas ocupei sempre o pior lugar.
Duas me precederam – eram lindas, mimadas.
Devia ser a última, no entanto,
Veio outra que ficou sendo a caçula.

Quando nasci, meu velho Pai agonizava,
Logo após morria.
Cresci filha sem pai,
Secundária na turma das irmãs.

Eu era triste, nervosa e feia.
Amarela, de rosto empalamado.
De pernas moles, caindo à toa.
Os que assim me viam – diziam:
“- Essa menina é o retrato vivo
do velho pai doente”.

Tinha medo das estórias
que ouvia, então, contar:
assombração, lobisomem, mula sem cabeça.
Almas penadas do outro mundo e do capeta.
Tinha as pernas moles
e os joelhos sempre machucados,
feridos, esfolados.
De tanto que caía.
Caía à toa.

Caía nos degraus.
Caía no lajedo do terreiro.
Chorava, importunava.
De dentro a casa comandava:
“-Levanta, moleirona”.

Minhas pernas moles desajudavam.
Gritava, gemia.
De dentro a casa respondia:
“- Levanta, pandorga”.

Caía à toa...
Nos degraus da escada,
No lajedo do terreiro.
Chorava. Chamava. Reclamava.
De dentro a casa se impacientava:
“- Levanta, perna-mole...”

E a moleirona, pandorga, perna-mole
se levantava com seu próprio esforço.

Meus brinquedos...
Coquilhos de palmeira.
Bonecas de pano.
Caquinhos de louça.
Cavalinhos de forquilha.
Viagens infindáveis...
Meu mundo imaginário
Mesclado à realidade.

E a casa me cortava: “menina inzoneira!”
Companhia indesejável – sempre pronta
a sair com minhas irmãs,
era de ver as arrelias
e as tramas que faziam
para saírem juntas
e me deixarem sozinha,
sempre em casa.

A rua... a rua!...
(Atração lúdica, anseio vivo da criança,
mundo sugestivo de maravilhosas descobertas)
- proibida às meninas do meu tempo.
Rígidos preconceitos familiares,
normas abusivas de educação
- emparedavam.

A rua. A ponte. Gente que passava,
o rio mesmo, correndo debaixo da janela,
eu via por um vidro quebrado, da vidraça
empanada.

Na quietude sepulcral da casa,
era proibida, incomodava, a fala alta,
a risada franca, o grito espontâneo,
a turbulência ativa das crianças.

Contenção... motivação... Comportamento estreito,
Limitando, estreitando exuberâncias,
Pisando sensibilidades.
A gestar dentro de mim...
Um mundo heroico, sublimado,
superposto, insuspeitado,
misturado à realidade.

E a casa alheada, sem pressentir a gestação,
acrimoniosa repisava:
“- Menina inzoneira!”
O sinapismo do ablativo
queimava.

Intimidada, diminuída. Incompreendida.
Atitudes impostas, falsas, contrafeitas.
Repreensões ferinas, humilhantes.
E o medo de falar...
E a certeza de estar sempre errando...
Aprender a ficar calada.
Menina abobada, ouvindo sem responder.

Daí, no fim da minha vida,
esta cinza que me cobre...
Este desejo obscuro, amargo, anárquico
de me esconder,
mudar o ser, não ser,
sumir, desaparecer,
e reaparecer
numa anônima criatura
sem compromisso de classe, de família.

Eu era triste, nervosa e feia.
Chorona.
Amarela de rosto empalamado,
de pernas moles, caindo à toa.
Um velho tio que assim me via
dizia:
“- Esta filha de minha sobrinha é idiota.
Melhor fora não ter nascido!”

Melhor fora não ter nascido...
Feia, medrosa e triste.
Criada à moda antiga,
- ralhos e castigos.
Espezinhada, domada.
Que trabalho imenso dei à casa
para me torcer, retorcer,
medir e desmedir.
E me fazer tão outra,
diferente,
do que eu deveria ser.
Triste, nervosa e feia.
Amarela de rosto empapuçado.
De pernas moles, caindo à toa.
Retrato vivo de um velho doente.
Indesejável entre as irmãs.

Sem carinho de Mãe.
Sem proteção de Pai...
- melhor fora não ter nascido.

E nunca realizei nada na vida.
Sempre a inferioridade me tolheu.
E foi assim, sem luta, que me acomodei
na mediocridade de meu destino.



 O MOINHO DO TEMPO

Pé de meia sempre vazio.
Vazios os armários
Seus mistérios desmentidos.

Fechaduras arrebentadas, arrancadas.
Velhas gavetas de antigas
mesas de austeras salas vazias.
Os lavrados que guardavam,
Vendidos, empenhados,
sem retorno.
As  velhas gavetas
guardam sempre um refugo de coisas
que se agarram às casas velhas e acabam mesmo
nos monturos.

As velhas gavetas
têm  um cheiro nojento de barata.

As arcas desmanteladas.
Os baús amassados.
Os abastos resumidos.
A fornalha apagada.
Economizado o pau de lenha.
Pelos cantos as aranhas
diligentes, pacientes, emaranham teias.

E a casa grande se apagando,
caindo lance a lance, seus muros de taipa.
E um gato miau, fedendo pelos cantos.

E a gente se apegava aos santos,
tão distantes...

Rezava, Rezava, pedia, prometia...
O tempo foi passando,
os santos, cansados, enfastiados
economizando os milagres do passado.
No fim os compradores de antiguidades
acabaram  mesmo levando os oratórios
e os santos, que fossem de madeira,
dando lugar à TV, ao Rádio RCA Victor de sete faixas.

A gente era moça do passado.
Namorava de longe, vigiada.
Aconselhada. Doutrinada dos mais velhos,
em autoridade, experiência, alto saber.
“Moça para casar não precisa namorar,
o que for seu virá”.
Ai, meu Deus! E como custava chegar...
Virá, Virá... Virá, Virá.... quando?
E o tempo passando e o moinho dos anos moendo,
e a  roda-da-vida rodando... Virá-virá!
A gente ali, na estaca, amarrada, consumida
de  Maria Borralheira, sem madrinha-fada,
sem sapatinho perdido,
sem arauto de príncipe-rei, a procurar
pelos reinos da cidade de Goiás
o pezinho faceiro do sapatinho de cristal,
caído na correria da volta.

A igreja, refúgio e confessionário antigo.
O frade, velho e cansado. Frei Germano, piedoso,
Exortando paciente e severo. “Minha filha, a virgindade
é um estado agradável aos olhos de Deus. Olha as
santas virgens,
Santa Terezinha de Jesus, Santa Clara, Santa Cecília,
Santa Maria Mãe de Jesus. Deus dá uma proteção
especial  às virgens.
Reza três ave-marias e uma salve rainha a Nossa
Senhora e vai comungar”.

A gente saía confortada, ouvia a missa,
cumpria a penitência e comungava humildemente,
ajoelhada,
véu na cabeça em modéstia reforçada.

Depois, depois, a solidão de solteira, o sonho honesto
De um noivo,
o desejo de filhos,
presença de homem, casa da gente mesma, dona ser.
Um lar.
Estado de casada.

A pobreza em toda volta, a luta obscura
de todas as mulheres goianas. No pilão, no  tacho,
fundindo velas de sebo, no ferro de brasa de engomar.
Aceso sempre o forno de barro.
As quitandas de salvação, carreando pelos taboleiros
os abençoados vinténs, tão valedores, indispensáveis.
Eram as costuras trabalhadas,
os desfiados, os crivos pacientes.
A reforma do velho, o aproveitamento dos retalhos.
Os bordados caprichados, os remendos instituídos,
os cerzidos pacientes...
Tudo economizado, aproveitado.
Tudo ajudava a pobreza daquela classe média, coagida,
forçada a manter as aparências de decência, compostura,
preconceito, sustentáculos da pobreza disfarçada.
Classe média do após treze de maio.
Geração ponte, eu fui, posso contar.

O poço d`água, a maravilhosa servidão da casa.
Toda a família na dependência do poço, da corda, do
Balde.
A água lá no fundo, cisterna, também chamada.
Um dia, dia incerto e já previsto o desastre, o transtorno.
Todos atingidos, impressionados, participantes,
da porta da rua ao fundo do quintal. Arrebentou a
corda do poço...
gasta e cansada, exausta da sua resistência.
Corda vigente, corda de arrocho, corda de enforcar,
lá se foi com seu pedaço, agarrada ao balde, descansar
no fundo profundo do poço.

A casa toda assanhada, informa: arrebentou a corda do poço.
Vamos tentar a retirada de salvação geral.
Todos participantes, impressionados, coniventes na salvação
do balde, o resto da corda.
A vizinha de lado comparece por cima do muro, oferece
seu balde, dá palpites, solidária.

Uma longa vara, um gancho na ponta a vasculhar
o fundo escuro, em passeio lento e paciente. Assistência,
a torcida geral. Afinal, ponta e gancho enlaçam o que desceu
e sobe triunfante. Faz-se a emenda com perícia,
gente antiga, afeita a essa e outras emergências.
Cada qual aos seus interesses e, volta a casa
à rotina da vida do passado.

Tanta pobreza a contornar.
Tanto sonho irrealizado, tanto abandono.
Tanta água de sonho puxado do poço da imaginação...

Valiam as velhas, seus adágios de sustentação:
conter e reprimir as jovens, dar-lhes esperanças,
ensinar-lhes a paciência, a vontade de Deus.
E a gente a querer abrir uma brecha naquela muralha
parda de pobreza e limitação.

Hoje sobrará para todos mil cruzeiros.
Me faltando sempre o vintém da infância. Bem por isso
mandei fazer um broche de um vintém de cobre
e preguei no meu vestido do lado do coração.

Sentir a presença daquele vintém
pobre da minha infância, tão procurado, tão escasso!...
Sentir a metade daquela bolacha que repartia comigo
o carinho da minha bisavó, na sua pobreza mansa.
Estender de novo minhas pequenas mãos de criança
para as quitandas, broinhas, brevidades
e biscoitos que me dava tia Nhorita,
ela, se findando numa velhice tão bonita
como outra igual não vi.
Seu sorriso de Mona Lisa,
seu mistério de Gioconda.
Ter nos meus braços aquela boneca de loiça vinda de Paris,
de chapeuzinho, enfeite, sua flor minúscula, azul, lá da França.
Sapatinhos e meias, loira, olhos azuis e que dormia...
e que nunca foi minha.
Eu vivia aquela boneca, sonhava e ela sempre ali, inacessível,
na estática da vitrine envidraçada da loja de “Seu” Cincinato.

Voltar à infância... Voltar ao paraíso perdido
de uma infância pobre que pedia tão pouco!
Menino Jesus, sorridente no oratório.
Uma bolinha azul nas mãos poderosas sustentando o mundo.

Ele, tão pequenino e frágil.
Tantos santinhos pobres me protegendo,
tantas velhas me ensinando as regras da vida...
Eu era cega, ceguinha, peticega, sem nada ver.
Mouca, surda,
surdinha, sem nada ouvir...
Chegar hoje a evocação dolorida e rude...

Meu vintém de cobre! Arrebentar todas as amarras
e contenções representadas.
Meu vintém, está comigo nestas páginas de escrever.




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Coralina, Cora, 1889 – 1985.  Melhores poemas / Cora Coralina: Seleção e Apresentação Darcy França Denófrio. 3ª. Ed. rev.  e  ampliada – São Paulo:Global, 2008. -  (Coleção Melhores Poemas / direção Edla van Steen)
ISBN 85-260-0883-8
1.Poesia Brasileira.  I.Denófrio, Darcy  França.  II.Van Steen, Edla.
2.Poesia: Literatura Brasileira










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