TRAVESSEIRO SUSPENSO POR FIOS DE NYLON

sábado, 12 de novembro de 2011

Mia Couto - Escritor Moçambicano - POEMAS

“Cada um descobre o seu anjo
tendo um caso com o demônio.”    Mia Couto

Escritor e jornalista moçambicano, António Emílio Leite Couto nasceu em 1955, na Beira, filho de uma família de emigrantes portugueses chegados a Moçambique no princípio da década de 50. Fez a escola primária na Beira. Em 1971, iniciou os seus estudos de Medicina na Universidade de Lourenço Marques (actualmente, Maputo). Por esta altura, o regime exercia grande pressão sobre os estudantes universitários. Ligado à luta pela independência de Moçambique, tornou-se membro da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). 
A partir do 25 de Abril e da independência de Moçambique, interrompeu os estudos para trabalhar como jornalista, em primeiro lugar, em "A Tribuna" , juntamente com Rui Knopfli. Nessa altura tornou-se também director da Agência de Informação de Moçambique (AIM). Participou na revista "Tempo" até 1981, ficando, depois, no "Notícias" até 1985. Altura em que ingressou na Universidade Eduardo Mondlane para tirar o curso de Biologia.

O seu primeiro livro, "Raiz de Orvalho" (poemas), foi publicado em 1983. Segundo o próprio autor, consiste numa espécie de contestação contra o domínio absoluto da poesia militante e panfletária. Seguiram-se, entre outros, Vozes Anoitecidas (1986), livro de contos com que se estreou na ficção e que foi premiado pela Associação de Escritores Moçambicanos; "Cada Homem é uma Raça" (1990), "Cronicando" (1988), livro de crónicas; "Terra Sonâmbula" (1992), o seu primeiro romance; "Estórias Abensonhadas" (1994), "A Varanda do Frangipani" (1996), "Contos do Nascer da Terra" (1997), "Vinte e Zinco" (1999) e "Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra" (2002). Em 2001, em Portugal, Mia Couto recebeu na Fundação Calouste Gulbenkian o Prémio Literário Mário António (prémio atribuído a escritores africanos lusófonos ou escritores timorenses de três em três anos) pela sua obra "O Último Voo do Flamingo".

In Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003-2005.




SER,PARECER

Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida

Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos.
Mia Couto


Quissico

1. Deixei o sol
na praia de Quissico

De bruços
sobre o Verão
eu deixei o Sol
na extensão do tempo

Molhando, quase líquido,
o dia afundava
nas fundas águas do Índico

A terra
se via estar nua
lembrando, distante,
seu parto de carne e lua

2. Não o pássaro: era o céu
que voava
 O ombro da terra
amparava o dia

A luz
tombava ferida
pingando
como um pulso suicida
um minhas ocultas asas

Sotaque da terra

Estas pedras
sonham ser casa
 sei
porque falo
a língua do chão
nascida
na véspera de mim
minha voz
ficou cativa do mundo,
pegada nas areias do Índico
 agora,
ouço em mim
o sotaque da terra
 e choro
com as pedras
a demora de subirem ao sol

Trajecto

Na vertigem do oceano
vagueio
sou ave que com o seu voo
se embriaga
Atravesso o reverso do céu
e num instante
eleva-se o meu coração sem peso
Como a desamparada pluma
subo  ao reino da inconstância
para  alojar a palavra inquieta
Na distância que percorro
eu  mudo de ser
permuto de existência
surpreendo os homens
na sua secreta obscuridade
transito por quartos
de cortinados desbotados
e nas calcinadas mãos
que esculpiram o mundo
estremeço  como quem desabotoa
a primeira nudez de uma mulher



Nocturnamente

Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo

Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces

 Palavra que desnudo
  
Entre a asa e o voo
nos tocámos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo




O POETA

O poeta não gosta de palavras:
escreve para se ver livre delas.
 A palavra
torna o poeta
pequeno e sem invenção.
 Quando,
sobre o abismo da morte,
o poeta escreve terra,
na palavra ele se apaga
e suja a página de areia.
 Quando escreve sangue
o poeta sangra
e a única veia que lhe dói
é aquela que ele não sente.
 Com raiva,
o poeta inicia a escrita
como um rio desflorando o chão.
Cada palavra é um vidro em que se corta.
 O poeta não quer escrever.
Apenas ser escrito.
 Escrever, talvez,
apenas enquanto dorme.

Árvore
  
cego
de ser raiz
imóvel
de me ascender caule
múltiplo
de ser folha
aprendo
a ser árvore
enquanto
iludo a morte
na folha tombada do tempo



 Morte silenciosa

A noite cedeu-nos o instinto
para o fundo de nós
imigrou a ave a inquietação

Serve-nos a vida
mas não nos chega:
somos resina
de um tronco golpeado
para a luz nos abrimos
nos lábios
dessa incurável ferida

Na suprema felicidade
existe uma morte silenciada



Pequeninura do morto e do vivo

O morto
abre a terra: encontra um ventre
O vivo
abre a terra: descobre um seio



 Manhã
 Estou
e num breve instante
sinto tudo
sinto-me tudo

Deito-me no meu corpo
e despeço-me de mim
para me encontrar
no próximo olhar

Ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão

Nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira

A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos

Educadamente mortos



Fundo do mar 
Quero ver
o fundo do mar
esse lugar
de onde se desprendem as ondas
e se arrancam
os olhos aos corais
e onde a morte beija
o lívido rosto dos afogados

Quero ver
esse lugar
onde se não vê
para que
sem disfarce
a minha luz se revele
e nesse mundo
descubra a que mundo pertenço

Poema Mestiço

escrevo mediterrâneo
na serena voz do Índico
 sangro norte
em coração do sul
 na praia do oriente
sou areia náufraga
de nenhum mundo
 hei-de
começar mais tarde
 por ora
sou a pegada
do passo por acontecer...

Raiz de Orvalho
  
 Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros
leitos despertaram

Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei  ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada

De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens

Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância

Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a  que livremente me condeno



Fui Sabendo de Mim

Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem  só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia
Mia Couto





A  ADIADA  ENCHENTE

Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.

Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.

BIOFAGIA

É vitalício: comer a Vida
deitando-a entontecida
sobre o linho do idioma.

Nesse leito transverso
dispo-a com um só verso.

Até chegar ao fim da voz.

Até ser um corpo sem foz.



POEMA DA DESPEDIDA



Não saberei nunca

dizer adeus


Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta  solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo.


SAUDADE


Magoa-me a saudade

do sobressalto dos corpos

ferindo-se de ternura

sói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés



Magoa-me a saudade

do tempo em que te habitava

como o sal ocupa o mar

como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas



Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,

tua noite sem remédio

tua virtude, tua carência

eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta



Traz

de novo, meu amor,

a transparência da água

dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono





Despedida
  
Aves marinhas soltaram-se dos teus dedos
quando  anunciaste a despedida
e  eu que habitara lugares secretos
e  me embriagara com os teus gestos
recolhi as palavras vagabundas
como a tempestade que engole os barcos
porque ama os pescadores

Impossível separarmo-nos
agora que gravaste o teu sabor
sobre o súbito
e infinito parto do tempo

Por isso te toco
no grão e na erva
e na poeira da luz clara
a minha mão
reconhece a tua face de sal

E quando o mundo suspira
exausto
e desfila entre mercados e ruas
eu escuto sempre a voz que é tua
e que dos lábios
se desprende e se recolhe

Ali onde se embriagam
os corpos dos amantes
o teu ventre aceitou a gota inicial
e um novo habitante
enroscou-se no segredo da tua carne

Nesse lugar
encostámos os nossos lábios
à funda circulação do sangue
porque me amavas
eu acreditava ser todos os homens
comandar o sentido das coisas
afogar poentes
despertar séculos à frente
e desenterrar o céu
para com ele cobrir
os teus seios de neve


Para Ti 


Foi para ti 



que desfolhei a chuva 



para ti soltei o perfume da terra 



toquei no nada 



e para ti foi tudo 



Para ti criei todas as palavras 



e todas me faltaram 



no minuto em que talhei 



o sabor do sempre 



Para ti dei voz 



às minhas mãos 



abri os gomos do tempo 



assaltei o mundo 



e pensei que tudo estava em nós 



nesse doce engano 



de tudo sermos donos 



sem nada termos 



simplesmente porque era de noite 



e não dormíamos 



eu descia em teu peito 



para me procurar 



e antes que a escuridão 



nos cingisse a cintura 



ficávamos nos olhos 



vivendo de um só 



amando de uma só vida




O BEIJO E A LÁGRIMA


Quero um beijo, pediu ela.



Um sismo

abalou o peito dele.

E devotou o calor

de lava dos seus lábios,
entontecida água na cascata.



Entusiamado,

ele se preparou para, de novo,

duplicar o corpo e regressar à vertigem do beijo.



Mas ela o fez parar.



Só queria um beijo.

Um único beijo para chorar.



Há anos que não pranteava.

E a sua alma se convertia

em areia do deserto.



Encantada,

ela no dedo recolheu a lágrima.

E se repetiu o gesto

com que Deus criou o Oceano.





Confidência

Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça


Porque eu cresço para ti

sou eu dentro de ti

que bebe a última gota

e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno



Porque apenas para os teus olhos

sou gesto e cor

e dentro de ti

me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci



Porque a minha mão infatigável

procura o interior e o avesso

da aparência

porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos



No húmido centro da noite

diz o meu nome

como se eu te fosse estranho

como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome




Toda a vida acreditei:

amor é os dois se duplicarem em UM.

Mas hoje sinto: ser um é ainda muito.

De mais.

Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada,
Ninguém no plural.
- Ninguéns. -




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